Quando o Espelho se Quebra: O Peso das Palavras e das Mudanças
— Achas mesmo que preciso de comer isso agora? — perguntei, com a voz mais fria do que pretendia, enquanto via a Sofia tirar uma fatia de bolo da caixa.
Ela olhou para mim, olhos cansados mas firmes, e respondeu: — Preciso, sim. Preciso de sentir que ainda posso ter prazer em alguma coisa nesta casa.
O silêncio caiu pesado entre nós. O relógio da cozinha marcava quase meia-noite. Os miúdos já dormiam, e a televisão fazia eco na sala vazia. Eu sentia-me exausto, mas não era só o corpo: era a alma, era o peso de anos de pequenas críticas, de olhares de lado, de palavras ditas e não ditas.
Nunca pensei que fosse chegar aqui. Sempre fui magro, atlético até. Jogava futebol com os amigos ao domingo, corria no parque ao sábado de manhã. Sofia era diferente: sempre lutou com o peso, com dietas, com a autoestima. E eu, sem perceber, fui tornando-me juiz e carrasco ao mesmo tempo.
— Se comesses menos pão ao jantar… — dizia-lhe. — Se te inscrevesses no ginásio comigo…
Ela tentava sorrir, tentava agradar-me. Mas eu via nos olhos dela o cansaço de quem já não acredita.
Tudo mudou quando ela arranjou aquele emprego novo na pastelaria da Dona Lurdes. De repente, tinha horários diferentes, colegas novos, histórias para contar. Começou a andar mais animada, a vestir-se melhor. E eu… comecei a engordar.
No início foi só uma barriga mais saliente, depois as calças começaram a apertar. Deixei de correr porque estava sempre cansado. O trabalho no escritório era cada vez mais exigente; os almoços eram apressados, cheios de fast food e refrigerantes. Sofia começou a cozinhar menos — tinha menos tempo — e eu refugiei-me nas sandes e nos doces que ela trazia para casa.
— Estás diferente — disse-me ela um dia, enquanto dobrava a roupa dos miúdos.
— Como assim? — perguntei, defensivo.
— Não sei… pareces mais triste. Mais… pesado.
A palavra ficou a ecoar na minha cabeça durante dias. Pesado. Não era só o corpo: era tudo em mim que estava mais lento, mais escuro.
Comecei a reparar nas pequenas coisas: Sofia já não pedia a minha opinião sobre o que vestir; já não me esperava para jantar; ria-se ao telefone com as colegas do trabalho. Eu sentia-me cada vez mais invisível dentro da minha própria casa.
Uma noite, depois de um dia particularmente mau no trabalho — o chefe tinha-me chamado à atenção por um erro num relatório — cheguei a casa e encontrei Sofia sentada à mesa da cozinha com a irmã, a Marta.
— Olha quem chegou! — disse Marta, sorridente.
— Boa noite — murmurei, largando a pasta no chão.
Sofia olhou para mim com um misto de pena e distância. — Queres jantar? Fiz sopa.
— Não tenho fome — menti.
Marta levantou-se para ir embora e deu um beijo à irmã. Antes de sair, olhou para mim e disse baixinho:
— Não deixes que o orgulho te impeça de veres quem tens ao teu lado.
Fiquei ali parado, sem saber o que responder. Orgulho? Era isso? Ou era medo?
Naquela noite não dormi. Fiquei a olhar para o teto do quarto escuro, ouvindo a respiração tranquila de Sofia ao meu lado. Lembrei-me de todas as vezes em que lhe disse para mudar, para ser diferente… E agora era eu quem precisava de mudar.
No dia seguinte tentei conversar com ela:
— Sofia… podemos falar?
Ela pousou o avental e olhou-me nos olhos:
— Diz.
— Sinto que estamos afastados… Que já não sou importante para ti.
Ela suspirou:
— Durante anos tentei ser aquilo que tu querias. Agora estou a tentar ser aquilo que eu preciso. Não é contra ti… mas também não posso continuar a viver à tua sombra.
As palavras dela doeram mais do que qualquer crítica que eu lhe tivesse feito. Senti-me pequeno, envergonhado.
Os dias passaram e comecei a evitar o espelho. O reflexo devolvia-me um homem cansado, inchado não só pelo peso físico mas pelo peso das minhas escolhas. Os miúdos começaram a perguntar porque já não íamos ao parque; Sofia começou a sair mais com as amigas do trabalho; eu refugiei-me no sofá e na televisão.
Uma tarde, ao chegar a casa mais cedo do trabalho, ouvi risos vindos da cozinha. Sofia estava com os miúdos a fazer bolachas. Ela ria-se como há muito tempo não ouvia. Senti uma pontada de ciúmes misturada com saudade daquele tempo em que éramos só nós dois contra o mundo.
Naquela noite tentei falar com ela outra vez:
— Sentes-te feliz?
Ela olhou para mim com uma serenidade nova:
— Sinto-me melhor comigo mesma. E tu?
Não consegui responder. A verdade é que não me lembrava da última vez que me sentira feliz comigo próprio.
Comecei então a tentar mudar pequenas coisas: deixei de trazer comida do escritório para casa; tentei ir caminhar ao fim da tarde; brinquei com os miúdos no jardim. Mas nada parecia suficiente para recuperar aquilo que tinha perdido.
Um sábado à noite fomos jantar à casa dos meus pais. A minha mãe olhou para mim e disse:
— Estás mais cheiinho… está tudo bem?
Senti o sangue subir-me à cara. O meu pai riu-se:
— Isso passa-te quando voltares ao futebol!
Sofia ficou calada durante o jantar todo. No carro, no regresso a casa, disse-me:
— Agora sabes como é ouvir comentários desses todos os dias.
Fiquei sem palavras. Era verdade: durante anos tinha sido eu a fazer esses comentários sem pensar no impacto que tinham nela.
Os meses passaram e fui percebendo que as mudanças não eram só físicas: eram emocionais, eram profundas. Sofia estava mais confiante, mais independente. Eu sentia-me perdido, mas também comecei a perceber que precisava de me perdoar antes de poder pedir perdão aos outros.
Uma noite sentei-me ao lado dela no sofá e disse:
— Desculpa por todas as vezes em que te fiz sentir menos do que és.
Ela olhou para mim com lágrimas nos olhos:
— Só queria que tivesses visto antes…
Abraçámo-nos em silêncio. Não sei se alguma vez voltaremos a ser como antes, mas sei que agora vejo Sofia como realmente é: forte, resiliente e capaz de se reinventar.
E eu? Ainda estou a aprender a aceitar-me como sou — com falhas, com peso extra, mas também com vontade de mudar.
Será que é possível reconstruir uma relação depois de tanto orgulho ferido? Ou será que certas palavras nunca se esquecem? Gostava de saber o que vocês pensam…