Quando o Destino Brinca com o Amor: A História de Inês e Tiago
— Inês, precisamos conversar. — A voz do Tiago tremia, quase se perdia no som da chuva a bater nas janelas do nosso pequeno apartamento em Almada. O meu coração apertou-se, como se já soubesse que aquela noite mudaria tudo.
Olhei para ele, sentado no sofá com as mãos entrelaçadas, os olhos fixos no chão. O Tiago nunca foi de fugir às conversas difíceis, mas naquela noite parecia um miúdo perdido. Senti um frio na barriga, uma sensação que me acompanhava desde que éramos apenas dois adolescentes apaixonados no liceu D. João II.
— O que foi? — perguntei, tentando manter a voz firme.
Ele respirou fundo. — Não sei se ainda te amo como antes.
O mundo parou. O som da chuva tornou-se distante. Lembrei-me de todas as promessas que fizemos, dos planos para casar na igreja da minha aldeia em Trás-os-Montes, das tardes passadas a sonhar com uma casa cheia de filhos e risos. Como é que tudo isto podia acabar assim?
— Estás a falar a sério? — sussurrei, sentindo as lágrimas a quererem cair.
Tiago levantou-se e veio sentar-se ao meu lado. Pegou nas minhas mãos, frias e trémulas.
— Eu tentei, Inês. Juro que tentei. Mas desde que perdi o emprego na fábrica… sinto-me vazio. Não sou o homem que prometi ser para ti.
A crise tinha-nos apanhado em cheio. O Tiago trabalhava numa fábrica de componentes automóveis, mas com os despedimentos em massa, ficou sem chão. Eu dava aulas de português numa escola secundária, mas o salário mal chegava para as contas. Os nossos pais ajudavam como podiam, mas também eles sentiam o peso da crise.
— Não é só isso — continuou ele. — A minha mãe está pior do coração, e o meu pai não consegue pagar as dívidas da casa. Sinto-me sufocado.
Abracei-o com força. — Vamos ultrapassar isto juntos, como sempre fizemos.
Mas ele afastou-se suavemente. — Não sei se consigo continuar a arrastar-te para este buraco comigo.
Aquela noite foi o início do fim. Durante semanas tentámos salvar o que restava do nosso amor. Fomos a sessões de terapia no centro de saúde, tentámos redescobrir os pequenos gestos que nos uniam: cozinhar juntos, passear à beira Tejo, ver filmes antigos enrolados numa manta. Mas havia sempre um silêncio entre nós, uma distância que nem os beijos conseguiam encurtar.
Os meus pais começaram a notar. A minha mãe, Dona Teresa, ligava-me todos os dias:
— Inês, estás tão calada… O Tiago anda estranho? — perguntava ela com aquela voz doce mas inquieta.
— Está tudo bem, mãe — mentia eu, porque não queria preocupar ninguém.
Mas a verdade é que já não dormíamos juntos há semanas. O Tiago passava horas a vaguear pela cidade à procura de trabalho ou a cuidar da mãe dele no hospital de Santa Maria. Eu sentia-me sozinha mesmo quando ele estava ao meu lado.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre dinheiro e futuro, ele saiu porta fora sem dizer para onde ia. Fiquei sentada na cozinha, a olhar para as fotografias na parede: nós dois no baile de finalistas, nas festas populares da aldeia, sorridentes e cheios de sonhos.
No dia seguinte, recebi uma mensagem dele:
“Preciso de tempo para pensar. Fico em casa dos meus pais uns dias.”
O tempo passou devagar. Os dias eram longos e vazios. Os meus colegas na escola começaram a reparar na minha tristeza. A professora Margarida tentou animar-me:
— Inês, és tão jovem… Não deixes que isto te destrua.
Mas como não deixar? O Tiago era tudo para mim desde os 16 anos. Tínhamos sobrevivido juntos ao exame nacional de português, às festas académicas em Coimbra, às dificuldades de arranjar emprego depois da licenciatura. Sempre fomos “Inês e Tiago”, nunca só Inês ou só Tiago.
Uma tarde chuvosa, fui visitar a mãe dele ao hospital. Quando cheguei ao quarto, encontrei o Tiago a segurar-lhe a mão. Ele olhou para mim com olhos vermelhos de chorar.
— Ela não vai aguentar muito mais — disse-me baixinho.
Sentei-me ao lado dele e ficámos ali em silêncio. Pela primeira vez em semanas senti que ainda havia algo entre nós: dor partilhada, medo partilhado.
Depois do funeral da mãe dele, tentei reaproximar-me. Convidei-o para jantar em nossa casa. Fiz bacalhau à Brás como ele gostava. Mas durante o jantar ele mal falou.
— Inês… — começou ele, olhando-me nos olhos pela primeira vez em muito tempo — Eu preciso mesmo de ir embora daqui por uns tempos. O meu primo arranjou-me trabalho na Suíça. Vou tentar recomeçar lá.
Senti o chão fugir-me dos pés.
— Vais deixar-me? — perguntei num fio de voz.
Ele abanou a cabeça devagar.
— Não quero arrastar-te para esta vida sem futuro… Mereces alguém que te faça feliz.
Chorei como nunca tinha chorado antes. Tentei convencê-lo a ficar, a lutar por nós mais uma vez. Mas ele já tinha decidido.
Na manhã seguinte fez as malas e saiu sem olhar para trás. Fiquei sozinha no apartamento onde tínhamos sonhado viver para sempre juntos.
Os meses seguintes foram um tormento: noites sem dormir, telefonemas não atendidos, mensagens sem resposta. Os meus pais tentaram animar-me:
— Filha, és forte! Vais encontrar alguém melhor! — dizia o meu pai com aquele otimismo ingénuo dos homens do campo.
Mas eu sabia que ninguém seria como o Tiago.
A vida continuou: dei aulas, paguei contas, fui à missa com a minha mãe aos domingos. Aos poucos fui aprendendo a viver sem ele, mas nunca deixei de esperar uma mensagem ou um telefonema inesperado.
Um ano depois recebi uma carta da Suíça:
“Inês,
Sei que te magoei e nunca me vou perdoar por isso. Aqui é tudo diferente: trabalho muito mas sinto-me vazio sem ti. Espero que um dia consigas perdoar-me e ser feliz — mesmo que não seja comigo.
Com amor,
Tiago”
Li aquela carta vezes sem conta até as palavras se desfazerem nas minhas mãos.
Hoje olho para trás e pergunto-me: será que o destino existe mesmo ou somos nós que destruímos aquilo que mais amamos? Quantos amores se perdem por medo ou orgulho? E vocês… já sentiram o peso de uma escolha impossível?