Quando o coração se parte, mas a esperança resiste: O meu caminho pela dor e pelo perdão
— Não me mintas, Miguel! Eu vi-te com ela! — gritei-lhe, a voz embargada, enquanto as lágrimas me queimavam o rosto. O Miguel olhou para mim, olhos baixos, mãos nos bolsos do casaco, como se quisesse esconder-se do mundo — ou de mim. O frio daquela noite de março parecia cortar-me a pele, mas era dentro do peito que doía mais.
— Inês, não é o que estás a pensar… — tentou ele, mas eu já não queria ouvir desculpas. O eco das minhas próprias palavras ressoava-me nos ouvidos: “Eu vi-te com ela”. Vi-o, sim. No café da esquina, onde costumávamos ir aos domingos depois da missa. Ele e a Rita, sentados juntos, as mãos entrelaçadas sobre a mesa. A Rita, minha colega de infância, minha amiga de sempre. Ou pelo menos era o que eu pensava.
Aquela noite foi só o início do meu inferno particular. Voltei para casa sem sentir as pernas, as lágrimas secando-me no rosto gelado. A minha mãe estava na sala, a ver a novela, mas bastou olhar para mim para perceber que algo estava errado.
— O que se passa, filha? — perguntou ela, largando o croché no colo.
— O Miguel… — tentei dizer, mas a voz falhou-me. Sentei-me ao lado dela e desabei. Ela abraçou-me com força, como fazia quando eu era pequena e tinha medo do escuro. Mas agora o escuro estava dentro de mim.
O meu pai entrou pouco depois, preocupado com o barulho. Quando percebeu o que se passava, ficou calado. O meu pai nunca foi de grandes palavras, mas naquele momento só queria que ele dissesse qualquer coisa. Qualquer coisa que me fizesse acreditar que tudo ia ficar bem.
Os dias seguintes foram um borrão de dor e raiva. A Rita tentou ligar-me várias vezes. Não atendi. Recebi mensagens dela: “Inês, precisamos de falar”; “Não é o que parece”; “Desculpa”. Mas como é que se pede desculpa por trair uma amiga? Como é que se perdoa uma coisa destas?
A minha irmã mais nova, a Sofia, tentava animar-me com disparates:
— Olha lá, mana, sempre disseste que o Miguel era um bocado chato… Se calhar até te fez um favor!
Mas eu não conseguia rir. Tudo me parecia cinzento. Até as manhãs de primavera perderam a cor.
Na escola, os olhares seguiam-me pelos corredores. As pessoas falavam baixo quando eu passava. Sabiam tudo — ou achavam que sabiam. A professora de Português chamou-me à parte:
— Inês, tens andado tão distraída… Se precisares de falar…
Agradeci-lhe com um sorriso amarelo. Mas não queria falar com ninguém. Só queria desaparecer.
Foi numa dessas noites longas e insones que me lembrei da avó Leonor. Ela dizia sempre: “Quando não souberes para onde ir, reza”. Peguei no terço que ela me deu quando fiz a comunhão e comecei a rezar. Ao princípio parecia ridículo — como é que umas contas podiam ajudar-me? Mas continuei. E aos poucos fui sentindo uma calma estranha a invadir-me.
A minha mãe percebeu e começou a sentar-se comigo à noite:
— Queres rezar comigo hoje?
E ali ficávamos as duas, em silêncio ou murmurando orações antigas. Não apagava a dor, mas dava-me força para aguentar mais um dia.
O Miguel continuava a tentar falar comigo. Mandava mensagens: “Preciso de te explicar”; “Não foi planeado”; “Desculpa”. Uma parte de mim queria ouvir-lhe as justificações, outra parte só queria esquecer que ele existia.
Uma tarde, ao sair da escola, encontrei-o à porta do portão.
— Inês, por favor… — pediu ele, os olhos vermelhos.
— O que é que queres? — perguntei fria.
— Eu errei… Não sei como aconteceu… Eu e a Rita estávamos só a conversar e…
— E acabaram de mãos dadas? — interrompi-o.
Ele baixou os olhos.
— Eu gostava de ti… Mas acho que já não era o mesmo…
As palavras dele foram facas no peito. Senti-me pequena, ridícula por ainda ter esperança.
— Vai-te embora, Miguel.
Virei-lhe as costas e fui-me embora sem olhar para trás.
Em casa, atirei-me para cima da cama e chorei até adormecer. Sonhei com os dois no café, rindo-se de mim.
Os dias foram passando devagarinho. A minha mãe insistia para eu sair com as amigas:
— Não podes ficar fechada em casa para sempre!
Aos poucos fui cedendo. A Marta e a Joana arrastaram-me para um lanche no parque.
— Olha lá — disse a Marta — tu és muito melhor do que isso! O Miguel não te merece!
A Joana concordou:
— E a Rita também não era assim tão boa amiga…
Rimos as três por entre lágrimas e bolos de chocolate comprados na pastelaria do senhor António.
Comecei a sentir-me menos sozinha. A dor ainda estava lá, mas já não era tão afiada.
Um domingo fui à missa com os meus pais. O padre falou sobre o perdão:
— Perdoar não é esquecer — disse ele — é libertarmo-nos do peso da mágoa.
As palavras ficaram-me na cabeça durante dias. Será que eu conseguia perdoar? Queria mesmo libertar-me desse peso?
Nessa noite escrevi uma carta à Rita. Não lha dei — não tive coragem — mas escrevi tudo o que sentia:
“Traíste-me quando mais precisei de ti. Doeu mais do que qualquer coisa que o Miguel pudesse fazer. Mas não quero passar o resto da vida presa ao passado. Espero que encontres paz e que nunca faças isto a mais ninguém.”
Dobrei a carta e guardei-a na gaveta da mesa-de-cabeceira.
Com o tempo fui voltando a ser eu própria. Voltei a estudar com vontade, voltei a rir com as amigas, voltei a sair ao sábado à noite para dançar na discoteca da vila.
Um dia encontrei a Rita na rua principal. Ela parou à minha frente, nervosa:
— Inês… Posso falar contigo?
Olhei-a nos olhos pela primeira vez em meses.
— Diz.
Ela começou a chorar:
— Desculpa… Eu nunca quis magoar-te… Não sei o que me deu…
Fiquei ali parada, sem saber o que dizer. Parte de mim queria abraçá-la e dizer-lhe que estava tudo bem; outra parte queria gritar-lhe tudo o que me tinha custado perder uma amiga assim.
No fim só consegui dizer:
— Espero mesmo que nunca faças isto a mais ninguém.
Ela assentiu em silêncio e afastou-se devagarinho.
Senti um alívio estranho — como se tivesse finalmente largado uma pedra pesada que carregava há meses.
Hoje olho para trás e vejo tudo com outros olhos. Sei que cresci muito naquele tempo difícil. Aprendi quem são os verdadeiros amigos e aprendi sobretudo a perdoar — não pelos outros, mas por mim própria.
Às vezes ainda me pergunto: será possível confiar outra vez depois de uma traição assim? Será possível amar sem medo? Talvez nunca saiba responder completamente… Mas sei que sou mais forte agora do que alguma vez fui antes.
E vocês? Já tiveram de perdoar alguém assim? Como encontraram forças para seguir em frente?