Quando o Comboio Mudou o Meu Destino: A História de Clara e o Bebé do Alfa Pendular

— Não faças isso, Clara! — gritou a minha mãe, com a voz embargada, enquanto eu fechava a porta de casa atrás de mim. O eco das suas palavras acompanhou-me até à paragem do autocarro, e depois até à estação de comboios. O céu de Coimbra estava cinzento, ameaçando chuva, mas o que pesava mesmo era o silêncio entre mim e ela, depois de mais uma discussão sobre o meu futuro.

Sentei-me no Alfa Pendular, janela do lado direito, e tentei não pensar em tudo o que deixava para trás: a casa onde cresci, o cheiro a café pela manhã, os gritos do meu irmão mais novo a jogar PlayStation. Mas era impossível. A minha mãe queria que eu ficasse, que aceitasse aquele estágio miserável na pastelaria da tia Rosa. Eu queria mais. Queria Lisboa, queria liberdade, queria ser alguém.

O comboio arrancou com um solavanco. Ao meu lado sentou-se uma mulher jovem, talvez da minha idade, com um casaco vermelho e olhos inchados de chorar. Olhou-me de relance, depois desviou o olhar para o telemóvel. O silêncio entre nós era pesado, mas havia algo nela que me inquietava.

Passaram-se vinte minutos até que ela começou a tremer. Primeiro subtilmente, depois de forma mais visível. — Está tudo bem? — perguntei, hesitante. Ela mordeu o lábio, olhou-me nos olhos e sussurrou: — Acho que vou ter o meu bebé agora.

O pânico instalou-se. Olhei em volta à procura de ajuda, mas o revisor estava longe e os outros passageiros pareciam alheios ao drama que se desenrolava ali. — Como te chamas? — perguntei, tentando manter a calma. — Mariana — respondeu ela, com lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto.

O tempo pareceu dilatar-se. Ajudei-a a respirar fundo, segurei-lhe a mão enquanto ela gritava de dor. O comboio continuava a avançar, indiferente ao milagre (ou tragédia) que se preparava para acontecer entre Coimbra-B e Entroncamento. Alguém chamou o revisor, que por sua vez ligou para o INEM. Mas não havia tempo.

— Não me deixes! — pediu Mariana, apertando-me os dedos até quase me magoar. — Não vou a lado nenhum — prometi, sentindo o coração aos saltos no peito.

O parto foi caótico e improvisado. Uma senhora idosa trouxe lenços de papel e água engarrafada. Um estudante de medicina tentou orientar-nos por telefone. Entre gritos e lágrimas, nasceu uma menina pequena e enrugada, envolta num casaco vermelho.

Mariana chorava baixinho, exausta. Eu tremia dos pés à cabeça. O comboio parou finalmente em Santa Apolónia e os paramédicos entraram a correr. Mariana foi levada numa maca, mas antes de desaparecer no meio da confusão agarrou-me pelo braço:

— Por favor… cuida dela. Não posso… não posso ficar com ela.

Fiquei ali, parada na plataforma, com um bebé nos braços e o cheiro a vida nova misturado com o medo do desconhecido.

Os dias seguintes foram um turbilhão: interrogatórios da polícia, perguntas dos assistentes sociais, telefonemas da minha mãe (“O que é que tu foste fazer?”), notícias nos jornais locais (“Bebé nasce em comboio rumo a Lisboa”). Eu própria não sabia explicar como é que aquela criança tinha ficado comigo — só sabia que não conseguia deixá-la ir.

Chamei-lhe Leonor. Passei noites em claro a embalá-la nos braços, enquanto tentava arranjar um quarto barato em Lisboa e um emprego qualquer para pagar as fraldas e o leite em pó. A cidade parecia-me agora um labirinto hostil: filas intermináveis nos centros de saúde, olhares desconfiados das vizinhas do bairro da Graça, burocracias sem fim para regularizar a situação da Leonor.

A minha mãe veio visitar-me uma semana depois. Entrou no quarto minúsculo onde vivíamos e ficou parada à porta, em silêncio. Depois sentou-se na cama ao meu lado e chorou comigo.

— Não te julgo — disse ela finalmente. — Só quero ajudar.

Aceitei a ajuda dela porque já não tinha forças para lutar sozinha. Juntas fomos ao tribunal de menores, falámos com assistentes sociais, procurámos Mariana nos hospitais de Lisboa (em vão). A cada dia que passava sentia-me mais mãe da Leonor e menos aquela rapariga perdida que fugiu de Coimbra para Lisboa.

Mas nem tudo era fácil. O pai da Leonor apareceu dois meses depois: um rapaz magro chamado Tiago, com ar assustado e voz trémula. Queria conhecer a filha mas não sabia ser pai. Discutimos várias vezes — ele queria levá-la para casa dos pais dele em Setúbal; eu não conseguia imaginar viver sem ela.

— Não és nada dela! — gritou ele uma noite, à porta do meu prédio.

— Sou tudo o que ela tem! — respondi-lhe, com lágrimas nos olhos.

A batalha legal arrastou-se durante meses. Os jornais voltaram a escrever sobre nós (“A menina do comboio: quem deve ficar com Leonor?”). Eu ia trabalhar ao balcão de uma loja chinesa durante o dia e estudava à noite para terminar o curso de Serviço Social à distância.

Houve dias em que pensei desistir. Dias em que olhava para Leonor a dormir e me perguntava se estava a fazer-lhe bem ou mal ao lutar por ela. Mas depois lembrava-me do olhar de Mariana naquele comboio: um olhar de desespero misturado com esperança.

No final do verão chegou a decisão do tribunal: Leonor ficaria comigo até Mariana ser encontrada ou até nova ordem judicial. Chorei tanto nesse dia que pensei que nunca mais teria lágrimas para nada.

A vida foi-se compondo aos poucos: arranjei um emprego melhor numa associação de apoio a mães solteiras; Leonor começou a gatinhar; a minha mãe vinha visitar-nos todos os fins-de-semana e até cozinhava bacalhau à Brás para congelar.

Nunca mais soube de Mariana. Às vezes sonho com ela: vejo-a sentada naquele banco do comboio, olhos tristes mas aliviados por saber que alguém ficou com a filha dela.

Hoje olho para Leonor — já anda, já fala (“mamã!”) — e penso em tudo o que mudou desde aquele dia no Alfa Pendular. Pergunto-me se algum dia terei respostas para todas as perguntas que ficaram por fazer: porque é que Mariana me escolheu? Porque é que eu fiquei? E vocês… teriam feito o mesmo? O que é ser mãe senão escolher amar alguém mesmo quando tudo parece impossível?