Quando o António se foi embora: O primeiro suspiro depois de trinta e três anos de casamento

— Não aguento mais, Maria. Preciso de outra vida. — As palavras do António ecoaram pela cozinha fria, enquanto ele evitava o meu olhar, mexendo nervosamente na chávena de café.

Senti o chão fugir-me dos pés. Trinta e três anos de casamento, três filhos criados, uma casa construída tijolo a tijolo, e agora isto. O silêncio entre nós era tão denso que quase me sufocava. Olhei para ele, tentando encontrar no rosto do homem que amei algum vestígio do companheiro de outrora, mas só vi cansaço e distância.

— Outra vida? — repeti, a voz embargada. — E eu? E os nossos filhos? —

Ele encolheu os ombros, como se tudo aquilo fosse um fardo demasiado pesado para carregar.

— A Marta faz-me sentir vivo outra vez. Não posso continuar a mentir-te. —

A Marta. O nome dela caiu como uma pedra no fundo do meu estômago. Sabia quem era: a colega nova do escritório, vinte anos mais nova do que eu, sempre com um sorriso pronto e uma gargalhada fácil. Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim, mas também uma estranha sensação de alívio. Talvez já não aguentasse mais aquela rotina de silêncios e olhares vazios.

Os dias seguintes foram um turbilhão. O António saiu de casa com uma mala pequena e um pedido de desculpa murmurada. Os nossos filhos — o João, a Sofia e o Miguel — ficaram em choque. O João ligou-me logo naquela noite:

— Mãe, queres que vá aí dormir contigo? —

— Não, filho. Estou bem. — menti, tentando soar forte.

Mas não estava bem. Passei horas sentada na sala, rodeada pelas fotografias da família: férias no Algarve, aniversários, natais cheios de risos. Tudo parecia tão distante agora.

A Sofia apareceu em casa dois dias depois, com os olhos vermelhos.

— Como é que ele pôde fazer isto? — gritou, atirando a mala dela para o chão. — Depois de tudo o que passámos! —

Abracei-a com força, sentindo as lágrimas dela misturarem-se com as minhas. O Miguel, o mais novo, fechou-se no quarto durante dias, recusando-se a falar comigo ou com o pai.

A família dividiu-se em silêncios e acusações veladas. A minha sogra ligou-me:

— Maria, desculpa o meu filho… Ele está perdido. —

Não consegui responder-lhe. Senti-me traída não só pelo António, mas por todos à minha volta que pareciam querer desculpar o imperdoável.

Os meses passaram devagar. No início, cada manhã era uma batalha para sair da cama. A casa parecia demasiado grande para mim sozinha. O cheiro dele ainda pairava nos lençóis, nas camisas penduradas no armário que não tive coragem de tirar.

Mas aos poucos comecei a respirar outra vez. Um dia acordei e percebi que não tinha chorado na noite anterior. Fui ao mercado da vila sozinha pela primeira vez em anos. A senhora Rosa do talho olhou para mim com pena:

— Então, Maria… como vai isso? —

Sorri-lhe, sem saber muito bem o que responder.

Comecei a redescobrir pequenos prazeres: ler um livro inteiro sem interrupções, ouvir música alta enquanto cozinhava, passear à beira-mar sem pressa nem destino.

A Sofia insistia para eu sair mais:

— Mãe, tens de viver! Vai ao cinema, vai jantar fora… —

No início resisti. Sentia-me deslocada no mundo das mulheres solteiras da minha idade, muitas delas divorciadas ou viúvas, cada uma com as suas cicatrizes escondidas.

Mas aceitei o convite da minha vizinha Teresa para ir ao grupo de costura da igreja. Lá encontrei outras mulheres como eu: a Dona Emília, que perdeu o marido há dez anos; a Carla, que foi traída duas vezes; a Ana Paula, que nunca casou mas sempre sonhou com uma família grande.

Entre linhas e agulhas partilhámos histórias e dores. Ri como há muito não ria. Senti-me menos sozinha.

O António ligava de vez em quando para saber dos filhos. Nunca me perguntou como eu estava. Soube pela Sofia que ele e a Marta estavam a viver juntos num apartamento novo em Lisboa.

O João afastou-se do pai. O Miguel recusava-se a vê-lo. Só a Sofia tentava manter alguma ligação:

— Ele continua teu pai… — dizia ela aos irmãos.

Mas eu sabia que nada voltaria a ser como antes.

Um dia encontrei o António por acaso no supermercado. Estava diferente: mais magro, cabelo pintado, roupa moderna demais para a idade dele.

— Olá, Maria… — disse ele, hesitante.

— Olá, António. — respondi seca.

Ficámos ali parados uns segundos embaraçosos até ele perguntar:

— Estás bem? —

Olhei-o nos olhos e respondi com sinceridade:

— Pela primeira vez em muitos anos… estou mesmo bem. —

Ele sorriu triste e afastou-se sem dizer mais nada.

A partir desse dia senti-me livre. Livre do peso das expectativas dos outros, livre da culpa que carreguei durante tanto tempo sem perceber porquê.

Comecei a viajar sozinha: fui ao Porto visitar uma amiga de infância; passei um fim-de-semana em Évora; caminhei sozinha pelas ruas de Lisboa sem medo nem pressa.

Os meus filhos começaram a ver-me com outros olhos. O João disse-me um dia:

— Mãe… admiro-te tanto pela força que tens tido. —

Abracei-o com lágrimas nos olhos.

Hoje olho para trás e vejo que sobrevivi ao fim do meu casamento porque finalmente aprendi a cuidar de mim mesma. Não foi fácil: houve noites de solidão profunda, discussões familiares dolorosas e momentos em que duvidei do meu valor.

Mas também houve reencontros comigo própria, novas amizades e uma paz interior que nunca pensei alcançar.

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem presas em casamentos mortos por medo da solidão? Quantas esquecem quem são para agradar aos outros?

E vocês? Já tiveram de se reinventar depois de perder tudo aquilo que julgavam ser o vosso mundo?