Quando o Amor Tem Preço: A História de Helena e Rui
— Helena, temos de falar. — A voz do Rui ecoou pela cozinha, fria como o mármore da bancada onde eu cortava cebolas para o jantar. Olhei para ele, tentando decifrar o que se passava. O tom não era o habitual.
— O que foi agora, Rui? — perguntei, limpando as mãos ao avental, já a sentir um nó no estômago.
Ele respirou fundo, desviando o olhar para a janela onde a chuva batia com força. — Quero que me devolvas o dinheiro que gastei nestes dez anos. Tudo. Desde as compras do supermercado até às férias no Algarve.
Por um momento, pensei que fosse uma piada de mau gosto. Mas o olhar dele era sério, duro. Senti o chão fugir-me dos pés. — Estás a brincar? — sussurrei, a voz quase sem força.
— Não estou. — Ele cruzou os braços. — Tu nunca trabalhaste fora desde que a Mariana nasceu. Foste tu que quiseste ficar em casa. Agora quero justiça.
As palavras dele cortaram-me como facas. Lembrei-me das noites mal dormidas com os nossos filhos, das febres, das birras, dos trabalhos de casa, dos aniversários organizados com tanto carinho. Lembrei-me de cada vez que pus os meus sonhos de lado para garantir que a nossa família tinha tudo.
— Justiça? Rui, eu abdiquei da minha carreira por nós! Por ti! — gritei, sentindo as lágrimas a quererem saltar.
Ele não se comoveu. — Eu só quero o que é meu. Não é justo seres tu a ficar com tudo se nos separarmos.
O silêncio caiu pesado entre nós. A Mariana entrou na cozinha nesse momento, com os olhos grandes e assustados. — Mãe? O que se passa?
Sorri-lhe como pude. — Nada, querida. Vai brincar com o teu irmão.
Ela hesitou, mas saiu. Assim que a porta se fechou, desabei numa cadeira. — Rui… Como é que chegámos aqui?
Ele não respondeu. Limitou-se a sair da cozinha, deixando-me sozinha com o cheiro da cebola e o peso do mundo nos ombros.
Nessa noite não consegui comer. O Rui dormiu no sofá e eu fiquei acordada a olhar para o teto do nosso quarto, a pensar em tudo o que tinha sacrificado por aquela família. Lembrei-me do meu emprego no escritório de advogados em Lisboa, das oportunidades que recusei quando engravidei da Mariana porque ele dizia que era melhor para as crianças terem a mãe por perto.
No dia seguinte, liguei à minha irmã, Sofia. Ela sempre foi o meu porto seguro.
— Helena, tu não podes aceitar isso! — exclamou ela ao telefone. — Ele está a ser injusto contigo! Tu deste tudo por essa família!
— Eu sei… mas tenho medo de perder os miúdos. E se ele tentar ficar com eles?
— Vais ter de lutar. Procura um advogado. Não estás sozinha.
As palavras dela deram-me alguma força. Passei os dias seguintes num torpor, a tentar manter as rotinas das crianças enquanto Rui me ignorava ou me lançava olhares frios. À noite discutíamos baixinho para não acordar os miúdos.
— Tu nunca me valorizaste! — atirei-lhe uma noite.
— E tu achas que é fácil ser o único a trabalhar? Sempre a pedir-te contas!
— Eu pedi-te alguma vez dinheiro para mim? Tudo o que fiz foi para esta casa!
As discussões tornaram-se diárias. A Mariana começou a ter pesadelos e o Tomás fez xixi na cama duas vezes numa semana. Senti-me culpada por não conseguir proteger os meus filhos daquela tempestade.
Procurei um advogado recomendado pela Sofia. Chamei-lhe Dr. António e ele ouviu-me com atenção.
— Helena, em Portugal o trabalho doméstico e o cuidado dos filhos são reconhecidos em tribunal. Não deixe que ele a intimide.
Saí do escritório dele com uma réstia de esperança, mas também com medo do futuro. Como iria sustentar-me? Quem me daria emprego depois de tantos anos fora do mercado?
O Rui tornou-se cada vez mais distante. Começou a chegar tarde a casa e uma noite vi uma mensagem no telemóvel dele: “Jantar amanhã? Sinto saudades.” O nome era Ana Rita.
O coração caiu-me aos pés. Confrontei-o.
— Quem é a Ana Rita?
Ele não negou nada. — É alguém que me compreende.
Senti raiva e tristeza ao mesmo tempo. — Então é por isso que queres acabar tudo? Porque tens outra?
Ele encolheu os ombros. — Talvez seja melhor assim.
Os dias seguintes foram um pesadelo. Tive de explicar às crianças que o pai ia sair de casa por uns tempos. A Mariana chorou durante horas e o Tomás recusou-se a falar comigo durante dois dias.
A minha mãe veio ajudar-me com as crianças e eu tentei encontrar forças para recomeçar. Voltei a enviar currículos para escritórios de advogados e até aceitei um trabalho temporário numa loja de roupa no centro comercial da cidade.
O processo de divórcio foi doloroso e humilhante. O Rui tentou convencer toda a família dele de que eu era uma interesseira, que só queria dinheiro dele. A sogra ligou-me aos gritos:
— Tu destruíste o meu filho! Sempre foste uma ingrata!
Chorei muito nesses dias, mas nunca à frente dos meus filhos.
No tribunal, o juiz ouviu-nos com paciência. O Dr. António defendeu-me com unhas e dentes:
— A minha cliente abdicou da sua carreira pelo bem da família comum! O contributo dela é inegável!
O Rui olhava para mim como se eu fosse uma estranha.
No final, o tribunal reconheceu o meu direito à casa e à pensão de alimentos para as crianças. Não ganhei tudo o que queria, mas ganhei paz.
Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente no espelho: mais forte, mais resiliente, menos ingénua. Os meus filhos estão bem — ainda choram às vezes pelo pai, mas sabem que podem contar comigo para tudo.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres em Portugal passam pelo mesmo? Quantas sacrificam tudo por amor e depois são tratadas como um fardo? Será justo medir o valor de uma vida partilhada em euros? Gostava de saber o que vocês pensam…