Quando o Amor se Torna Prova: Entre a Minha Casa e a Mãe Dele

— Não posso acreditar que estás mesmo a dizer isso, Miguel! — gritei, sentindo o peito apertado, as mãos trémulas. Ele estava ali, parado no meio da sala, com os olhos vermelhos de raiva e cansaço, a mala já meio feita aos pés.

— Ela não tem para onde ir, Sofia! É minha mãe! — respondeu ele, a voz a tremer entre o desespero e a determinação. — Não vou deixá-la sozinha num lar. Não depois de tudo o que ela fez por mim.

O relógio da parede marcava quase meia-noite. O nosso filho, Tomás, dormia no quarto ao lado, alheio ao furacão que devastava o nosso casamento. Eu sentia-me perdida, esmagada entre o amor pelo meu marido e o medo do que aquela decisão significava para todos nós.

A mãe do Miguel, Dona Amélia, sofria de uma doença degenerativa. Os médicos tinham sido claros: não havia cura. Havia dias em que ela não reconhecia ninguém, outros em que parecia ela própria, mas depois vinham os episódios — gritos sem sentido, risos descontrolados, fugas pela rua fora sem saber voltar. Já tínhamos ido buscá-la à esquadra duas vezes. Eu própria já a tinha encontrado sentada no banco do jardim, a falar sozinha com as árvores.

— Miguel, eu compreendo… Mas tu sabes como ela está! Não temos condições para cuidar dela aqui. O Tomás… — tentei argumentar, mas ele interrompeu-me.

— O Tomás é neto dela! Tem de aprender o que é cuidar da família!

— E se ela se perder? Se fizer mal a si própria? Ou ao Tomás? — A minha voz falhava. — Eu não consigo fazer isto sozinha. Tu trabalhas todo o dia!

Ele virou-me as costas e começou a enfiar roupa na mala. O som do fecho relâmpago cortou-me como uma lâmina.

Naquela noite não dormi. Fiquei sentada na cozinha, a olhar para as paredes brancas, a ouvir os passos dele no corredor. Lembrei-me da primeira vez que conheci Dona Amélia: uma mulher forte, de voz firme e olhar doce. Nunca imaginei vê-la assim, frágil e perdida no seu próprio corpo.

No dia seguinte, Miguel saiu cedo. Não me disse para onde ia. Recebi uma mensagem dele ao fim da tarde: “Vou buscar a mãe. Quando chegar, quero que estejas preparada. Se não consegues aceitar isto, talvez seja melhor cada um seguir o seu caminho.”

O chão fugiu-me dos pés. Liguei à minha irmã, Rita.

— Sofia… — disse ela, depois de me ouvir soluçar durante minutos. — Tu tens de pensar em ti e no Tomás. Não podes carregar esse peso sozinha.

— E se ele me deixar? — perguntei-lhe, a voz embargada.

— Se ele te deixar por isto… talvez nunca tenha estado realmente do teu lado.

As palavras dela ficaram a ecoar-me na cabeça enquanto preparava o jantar para o Tomás. Ele entrou na cozinha com o pijama azul e os olhos sonolentos.

— Mamã, porque estás triste?

Ajoelhei-me ao lado dele e abracei-o com força.

— Às vezes os adultos têm problemas difíceis de resolver, meu amor.

Naquela noite sonhei com Dona Amélia a vaguear pela casa às escuras, chamando por um filho que já não reconhecia.

Dois dias depois, Miguel chegou com ela. Dona Amélia parecia uma sombra do que fora: magra, olhar perdido, mãos sempre inquietas. Quando entrou em casa olhou para mim como se fosse uma estranha.

— Quem é esta menina bonita? — perguntou ao Miguel.

Ele sorriu-lhe com ternura e respondeu:

— É a Sofia, mãe. A minha mulher.

Ela riu-se alto, um riso estranho e infantil.

Os primeiros dias foram um caos. Dona Amélia acordava durante a noite e tentava sair de casa. Uma vez encontrámo-la na varanda em pleno inverno, descalça e a cantarolar uma canção de infância. O Tomás começou a ter medo dela; chorava quando ela se aproximava demasiado ou gritava sem motivo aparente.

Miguel tentava ajudar quando estava em casa, mas era eu quem ficava com tudo durante o dia: as refeições recusadas, os banhos forçados, as crises de choro e raiva. Comecei a sentir-me esgotada. Perdi peso. Deixei de dormir.

Uma tarde encontrei Dona Amélia na cozinha com uma faca na mão. Estava a cortar pão mas tremia tanto que quase se magoou. Arranquei-lhe a faca das mãos e ela gritou comigo como se fosse uma criança contrariada.

Nessa noite sentei-me com Miguel na sala.

— Isto não pode continuar assim — disse-lhe, exausta. — Estou a perder-me nisto tudo. O Tomás está assustado. Eu não aguento mais.

Ele olhou para mim como se eu fosse uma estranha.

— Então vais desistir dela? Vais obrigar-me a escolher?

— Não é isso! Mas precisamos de ajuda! Um lar especializado…

Ele levantou-se abruptamente.

— Nunca vou meter a minha mãe num lar! Nunca! Se não consegues aceitar isto… então talvez seja melhor acabarmos aqui.

Fiquei ali sentada enquanto ele subia as escadas para fazer as malas outra vez. Senti-me vazia, derrotada.

No dia seguinte ele saiu de casa sem olhar para trás. Levou Dona Amélia consigo para casa da irmã dele, Inês. Durante semanas não falou comigo. O Tomás perguntava todos os dias pelo pai; eu respondia sempre com um nó na garganta.

A solidão era esmagadora mas também libertadora. Aos poucos fui recuperando forças. Voltei ao trabalho, procurei ajuda psicológica para mim e para o Tomás. A Inês ligou-me um dia:

— Sofia… desculpa tudo isto. O Miguel está perdido. A mãe está pior… Nós também não conseguimos lidar com ela sozinhos.

Senti pena deles mas também alívio por não estar mais naquela prisão invisível.

Meses depois recebi os papéis do divórcio. Assinei-os com lágrimas nos olhos mas também com uma estranha sensação de paz.

Hoje olho para trás e pergunto-me: até onde devemos ir por amor? Até onde é justo sacrificar-nos pelos outros? Será egoísmo pensar em nós próprios quando tudo à nossa volta desaba?

E vocês? O que fariam no meu lugar?