Quando o Amor se Torna Peso: A História de Uma Mãe Portuguesa e a Ingratidão Filial
— Mariana, não podes simplesmente ignorar-me! — gritei, a voz embargada, enquanto ela fechava a porta do carro com um estrondo. O motor arrancou e fiquei ali, no passeio, com as mãos a tremer e o coração a bater descompassado. O vento de novembro cortava-me a pele, mas nada doía tanto como aquela distância fria entre nós.
Sempre fui uma mãe dedicada. Chamo-me Teresa, nasci em Coimbra, filha de gente simples. Casei cedo com o António, homem trabalhador, mas de poucas palavras. Quando Mariana nasceu, jurei a mim mesma que ela teria tudo o que eu nunca tive: amor, oportunidades, compreensão. Lembro-me de passar noites em claro ao lado do berço, a vigiar-lhe a respiração, a prometer-lhe um mundo melhor.
A infância dela foi feita de sacrifícios meus. Trabalhava como auxiliar numa escola primária, limpava casas ao fim de semana, fazia tudo para que Mariana tivesse explicações de matemática, aulas de piano, roupas novas para o Natal. O António resmungava: “Estás a mimá-la demais, Teresa. A vida não é feita de facilidades.” Mas eu não queria ouvir. O meu amor era maior do que qualquer advertência.
Mariana cresceu bonita e inteligente. Entrou na Faculdade de Letras em Lisboa, orgulho da família. Lembro-me do dia em que a deixei no quarto alugado, as malas pesadas e os olhos dela ainda mais. “Mãe, e se eu não conseguir?” — perguntou-me, a voz trémula. Abracei-a com força: “Consegues tudo, filha. Eu estou aqui.”
Durante anos, fiz viagens de autocarro para Lisboa, levando-lhe tupperwares de comida caseira, envelopes com dinheiro escondido entre as roupas. Mariana agradecia, mas havia sempre uma pressa nos gestos, uma distância nos olhos. “Mãe, não precisas de vir tantas vezes. Eu desenrasco-me.” Mas eu não sabia ser de outra forma.
Quando conheceu o Miguel, achei que finalmente ia ser feliz. Ele era educado, engenheiro informático, vinha de uma família de Cascais. No início, tratava-me com respeito, mas depressa percebi que me via como um peso. Mariana começou a telefonar menos, as visitas tornaram-se raras. “Estamos ocupados, mãe. O trabalho, a casa nova… Sabes como é.”
O António adoeceu. Cancro no pulmão. Mariana apareceu no hospital uma vez, com pressa, o Miguel à porta do quarto a olhar para o telemóvel. “Desculpa, mãe, temos um jantar importante.” O pai morreu sem ouvir um último “amo-te” da filha. Fiquei sozinha na casa grande demais para mim.
Os meses passaram. Liguei vezes sem conta. Mensagens sem resposta. No Natal, preparei bacalhau com todos, pus a mesa para três. Esperei até às dez da noite. Mariana mandou uma mensagem: “Mãe, não conseguimos sair de Lisboa. Desculpa.” Senti o chão fugir-me dos pés.
As vizinhas perguntavam: “Então, a Mariana não vem?” Eu sorria, fingindo normalidade. “Está muito ocupada, coitada.” Mas por dentro gritava. O que fiz de errado? Dei-lhe tudo. Sacrifiquei-me por ela. Porque me evita agora?
Um dia, decidi ir a Lisboa de surpresa. Toquei à campainha do apartamento deles. O Miguel abriu a porta, surpreso. “Teresa… não estávamos à espera.” Mariana apareceu atrás dele, o rosto fechado. “Mãe, não podes aparecer assim. Temos a nossa vida.” Senti-me pequena, intrusa na vida da minha própria filha.
No regresso a Coimbra, chorei no comboio. As lágrimas caíam sem controlo. Lembrei-me das noites em claro, dos sorrisos dela em criança. Onde foi que me perdi? Será que o meu amor sufocou a Mariana? Ou será que ela se esqueceu de tudo o que fiz por ela?
Os dias tornaram-se todos iguais. Levanto-me cedo, faço café para dois por hábito. Olho para as fotografias na parede: Mariana com tranças, Mariana no primeiro dia de escola, Mariana de toga na formatura. Sinto saudades de tudo o que fomos.
Às vezes, ligo-lhe só para ouvir a voz dela no atendedor. “Olá, aqui é a Mariana. Deixe mensagem.” Nunca devolve as chamadas. As vizinhas continuam a perguntar. “Já tens netos?” Sorrio e minto: “Ainda não, mas um dia…”
No supermercado, vejo mães com filhas, risos cúmplices nos corredores. Sinto inveja, vergonha dessa inveja. Porque é que o amor de mãe se transforma tantas vezes em solidão?
Há dias em que me revolto. Pego no telefone e escrevo mensagens longas: “Filha, preciso de ti. Sinto a tua falta.” Apago tudo antes de enviar. Não quero parecer carente. Não quero ser um peso.
No aniversário dela, comprei um presente bonito: um cachecol azul, da cor dos olhos dela em criança. Enviei pelo correio. Nunca agradeceu. No Facebook, vi uma foto dela em Paris com o Miguel. Sorria como nunca sorriu para mim nos últimos anos.
O tempo passa devagar. Os domingos são os piores. Oiço a missa na televisão, faço sopa para congelar. Às vezes, sento-me na varanda e olho para a rua vazia. Penso no António, no que ele diria se visse isto. Talvez tivesse razão: “Dás demais, depois não te dão nada.”
Mas como se aprende a dar menos? Como se aprende a deixar ir?
Uma tarde, recebi uma carta. Era da Mariana. O coração disparou ao ver a letra dela no envelope. Abri com mãos trémulas:
“Mãe,
Sei que tenho estado distante. Não é por falta de amor. Preciso do meu espaço, da minha vida. Cresci a ver-te sacrificar tudo por mim e isso pesa-me. Sinto culpa por não conseguir retribuir da mesma forma. O Miguel não entende o nosso laço. Às vezes, sinto-me sufocada entre o que esperas de mim e o que consigo dar. Não quero perder-te, mas preciso de ser eu própria.
Amo-te sempre,
Mariana”
Li a carta vezes sem conta. Chorei. Senti raiva, depois alívio. Talvez tenha dado demais. Talvez Mariana precise de se afastar para se encontrar. Mas como se vive com este vazio?
Hoje, continuo à espera. Não sei se algum dia voltaremos a ser próximas. Mas aprendi que o amor de mãe é feito de entrega e também de perda. E pergunto-me: será que amar demais é um erro? Ou será que é simplesmente a condição de ser mãe?
E vocês, já sentiram este vazio? Já deram tudo a alguém que depois vos virou costas? O que fariam no meu lugar?