Quando o Amor se Torna Escárnio: O Peso de Ser Ridicularizada pelo Meu Marido

— Outra vez com essa roupa, Sofia? Achas mesmo que te fica bem? — A voz do Rui ecoou pela cozinha, carregada de sarcasmo, enquanto eu tentava preparar o jantar. Senti o rosto arder, não só pelo calor do fogão, mas pela vergonha que me invadiu. Olhei para baixo, para a blusa azul que tanto gostava, agora tingida de insegurança.

Não era a primeira vez. Aliás, já nem conseguia contar as vezes em que Rui fazia piadas sobre mim, sobre o meu corpo, sobre a minha maneira de falar ou até sobre os meus sonhos. No início do casamento, há dez anos, ele era carinhoso, fazia-me rir com as suas brincadeiras. Mas, com o tempo, as piadas deixaram de ser inofensivas e passaram a ser lanças afiadas.

— Não ligues, mãe — murmurou a Mariana, a nossa filha de 14 anos, tentando disfarçar o desconforto enquanto mexia no telemóvel. O olhar dela era um misto de pena e raiva. Senti um nó na garganta. Não queria que ela crescesse a achar que aquilo era normal.

Depois do jantar, Rui sentou-se no sofá e ligou a televisão. Eu fiquei na cozinha a lavar a loiça, as lágrimas misturando-se com a água quente. Lembrei-me dos tempos em que sonhava ser professora de literatura. Rui dizia sempre: “Para quê? Ninguém lê em Portugal. Vais acabar a dar aulas a meia dúzia de miúdos malcriados.” Ri-me na altura, mas agora percebia que aquelas palavras eram mais do que brincadeira.

Naquela noite, deitei-me cedo. Rui entrou no quarto já depois da meia-noite, com cheiro a cerveja e riso fácil. Deitou-se ao meu lado e sussurrou:

— Amanhã tenta vestir-te como uma mulher decente, está bem? Não quero passar vergonha no almoço com os meus pais.

Virei-me para o lado oposto, sentindo o colchão afundar sob o peso das palavras dele. Lembrei-me da minha mãe, Maria do Céu, sempre tão forte e orgulhosa. “Nunca deixes homem nenhum fazer-te sentir menos”, dizia ela. Mas eu sentia-me cada vez menos.

No almoço do dia seguinte, na casa dos sogros em Sintra, Rui não perdeu tempo:

— Vejam só como a Sofia é desastrada! — exclamou quando deixei cair um copo. Todos riram. O sogro tentou disfarçar, mas a sogra abanou a cabeça com um sorriso condescendente.

— Rui, deixa-te disso — murmurou ela. Mas ele continuou:

— Ela sempre foi assim. Ainda bem que a Mariana saiu ao pai!

A Mariana olhou para mim e apertou-me a mão debaixo da mesa. Senti vontade de fugir dali, desaparecer.

À noite, depois de voltarmos para casa, sentei-me na varanda com uma manta sobre os ombros. O vento frio parecia menos cortante do que as palavras de Rui. Mariana veio ter comigo.

— Mãe… porque é que deixas o pai falar assim contigo?

Não soube responder. Como explicar-lhe que o amor pode transformar-se em medo? Que às vezes ficamos presos numa teia de pequenas humilhações até já não sabermos quem somos?

Na semana seguinte, tentei conversar com Rui.

— Rui, dói-me quando fazes piadas à minha custa. Sinto-me… pequena.

Ele riu-se.

— Estás sensível hoje! Não sabes brincar? Se não aguentas uma piadinha…

— Não é uma piadinha quando é todos os dias — insisti.

Ele levantou-se bruscamente.

— Se estás tão infeliz, porque não vais embora? — atirou ele, antes de sair batendo a porta.

Fiquei ali parada, sentindo o chão fugir-me dos pés. E se ele tivesse razão? E se eu fosse mesmo demasiado sensível? Liguei à minha irmã Inês.

— Sofia, tu não és sensível demais — disse ela com firmeza. — O Rui é que está errado! Não podes continuar assim.

Mas como sair? Tínhamos uma filha, uma casa cheia de contas por pagar e uma vida construída em torno de sonhos partilhados — ou assim pensava eu.

Os dias passaram entre silêncios pesados e pequenas farpas lançadas à mesa do pequeno-almoço. Mariana começou a passar mais tempo fora de casa; eu sabia que era para fugir à tensão. Uma noite ouvi-a chorar no quarto. Entrei devagarinho.

— O pai goza contigo porque não gosta de ti? — perguntou ela baixinho.

O coração partiu-se-me em mil pedaços.

— Não é isso… O pai tem problemas dele. Mas isso não desculpa o que faz.

Ela abraçou-me com força.

No trabalho, comecei a cometer erros. A minha chefe chamou-me ao gabinete.

— Sofia, estás bem? Pareces distante ultimamente.

Quis contar-lhe tudo, mas limitei-me a sorrir e dizer que era cansaço.

Numa sexta-feira à noite, depois de mais uma discussão por causa das minhas “incapacidades”, Rui saiu para beber com amigos. Fiquei sozinha na sala, rodeada pelo silêncio da casa vazia. Peguei num caderno antigo e comecei a escrever:

“Quando foi que deixei de me reconhecer ao espelho? Quando foi que troquei os meus sonhos por medo?”

Escrevi durante horas. Chorei tudo o que tinha guardado durante anos. No papel encontrei um pouco da Sofia que tinha perdido.

No dia seguinte, tomei uma decisão: ia procurar ajuda. Marquei consulta com uma psicóloga e contei-lhe tudo — as piadas, as humilhações diárias, o medo de não ser suficiente nem para mim nem para a minha filha.

Aos poucos fui ganhando coragem para me impor. Comecei a responder às piadas de Rui com silêncio ou com um olhar firme. Ele estranhou.

— Agora ficaste muda? — perguntou ele num jantar de família.

— Não vou alimentar mais as tuas brincadeiras — respondi calmamente.

A sogra olhou para mim surpresa; Mariana sorriu orgulhosa.

As discussões aumentaram. Rui não gostava da minha nova postura. Uma noite gritou:

— Estás diferente! Já não és a mulher por quem me apaixonei!

Olhei-o nos olhos e respondi:

— Talvez nunca tenhas conhecido verdadeiramente quem eu sou.

Foi nesse momento que percebi: não podia continuar ali só porque tinha medo do desconhecido. Falei com Mariana e expliquei-lhe tudo. Ela chorou mas disse:

— Prefiro ver-te feliz sozinha do que triste com o pai.

Com o apoio da minha irmã e da psicóloga, comecei a planear a separação. Arranjei um pequeno apartamento em Lisboa e levei comigo apenas o essencial: livros, roupas e as memórias boas que ainda restavam.

O dia em que saí foi um dos mais difíceis da minha vida. Rui tentou convencer-me a ficar:

— Vais arrepender-te! Ninguém te vai querer como eu!

Mas eu já não tinha medo das palavras dele.

Nos meses seguintes reconstruí-me aos poucos. Voltei a estudar literatura à noite; Mariana vinha passar fins-de-semana comigo e dizia sempre:

— Gosto mais desta mãe sorridente!

Ainda dói lembrar os anos perdidos entre risos falsos e lágrimas escondidas. Mas hoje sei que mereço respeito — dos outros e de mim mesma.

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem presas ao escárnio disfarçado de amor? Quantas Sofias há por aí caladas no silêncio das suas casas?