Quando o Amor se Torna Cálculo: A História de uma Mãe Lisboeta
— Mãe, não percebes que agora preciso mesmo desse dinheiro? — A voz da Mariana ecoava pelo corredor estreito do meu apartamento em Benfica, carregada de impaciência e um tom quase acusatório. Eu olhava para ela, sentada à minha frente na mesa da cozinha, com os olhos marejados. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com a tensão no ar.
— Mariana, filha, eu já não posso ajudar-te como antes. A reforma mal chega para as contas e para a comida… — tentei explicar, mas a minha voz saiu trémula, quase um sussurro.
Ela revirou os olhos e suspirou alto, como se eu fosse um fardo. — Pois, mas quando o pai estava vivo nunca faltou nada! Agora parece que só pensas em ti!
Aquelas palavras cortaram-me como uma faca. O António partiu há três anos e desde então tudo mudou. A casa ficou mais fria, mais silenciosa. E eu, que sempre fui forte por fora, sentia-me cada vez mais frágil por dentro.
Mariana levantou-se bruscamente, pegou no casaco e chamou o Tomás. O meu neto olhou-me com aqueles olhos grandes e doces, mas não disse nada. Saíram os dois, deixando atrás de si um vazio ensurdecedor.
Fiquei ali sentada, sozinha com a chávena de café já fria entre as mãos. Perguntei-me onde tinha falhado. Teria sido demasiado protetora? Teria dado demais? Ou talvez não tivesse dado o suficiente do que realmente importava: tempo, atenção, amor sem condições.
Lembro-me de quando a Mariana era pequena. Trabalhava como empregada de limpeza num hospital em Lisboa. Saía de casa ainda de madrugada para apanhar o autocarro 726 e só voltava já noite cerrada. Muitas vezes deixava-a com a vizinha, a Dona Rosa, porque não podia faltar ao trabalho. O dinheiro era pouco, mas fazia questão de lhe comprar sempre um presente no Natal e no aniversário. Queria que ela sentisse que era especial.
Quando entrou para a faculdade, fiz das tripas coração para lhe pagar os livros e o passe social. O António ajudava como podia, mas também ele tinha um ordenado pequeno. Mesmo assim, nunca deixámos faltar nada à Mariana. Lembro-me do orgulho que senti quando ela se formou em Psicologia. Chorei tanto nesse dia…
Mas agora tudo parecia tão distante. Mariana arranjou emprego numa clínica privada em Oeiras, casou-se com o Rui — um homem que nunca me inspirou confiança — e tiveram o Tomás. Durante anos continuei a ajudá-los: pagava parte da renda quando ela ficou desempregada, comprava roupa para o neto, enchia-lhes a despensa quando vinham cá a casa.
Mas desde que me reformei tudo mudou. O dinheiro passou a ser contado ao cêntimo. Tive de aprender a dizer não. E foi aí que comecei a perder a minha filha.
As visitas tornaram-se raras. Mariana arranjava sempre desculpas: o trabalho, o trânsito na Marginal, o Tomás com testes na escola… Mas eu sabia que era porque já não podia ajudá-los como antes.
Uma tarde de domingo, decidi ir eu até à casa deles em Carnaxide. Levei um bolo de laranja ainda morno e um saco com brinquedos antigos do Rui que encontrei no sótão. Toquei à campainha e ouvi passos apressados do outro lado da porta.
— Mãe? O que fazes aqui sem avisar? — perguntou Mariana, visivelmente incomodada.
— Vim só ver-vos… Trouxe um bolinho para o lanche — tentei sorrir.
Ela hesitou antes de me deixar entrar. O Rui nem sequer saiu do escritório para me cumprimentar. Tomás veio dar-me um abraço tímido e depois voltou para o tablet.
Durante o lanche, tentei puxar conversa:
— Então Tomás, como vão as aulas?
Ele encolheu os ombros sem tirar os olhos do ecrã.
— Mãe, ele tem estado muito cansado — disse Mariana rapidamente, desviando o olhar.
Senti-me deslocada naquela casa onde antes era recebida com alegria. Fiquei pouco tempo e regressei a casa com o coração apertado.
As semanas passaram e as chamadas da Mariana tornaram-se cada vez mais curtas e distantes. Um dia liguei-lhe para saber se precisavam de alguma coisa para o Tomás.
— Não te preocupes mãe, agora tratamos nós disso — respondeu ela friamente.
Comecei a perceber que estava a perder não só a minha filha como também o meu neto. Senti uma dor profunda, uma espécie de luto por algo que ainda estava vivo mas já não me pertencia.
Numa noite chuvosa de novembro, recebi uma mensagem da Mariana: “Mãe, podes emprestar-me 200 euros? O carro avariou-se e precisamos mesmo.” Fiquei horas a olhar para aquela mensagem. Sabia que não podia ajudar sem sacrificar as minhas próprias necessidades básicas.
Respondi: “Desculpa filha, não consigo mesmo.” Não houve resposta.
No Natal desse ano passei sozinha pela primeira vez em décadas. Fiz bacalhau com natas só para mim e sentei-me à mesa posta para três pessoas. Olhei para as cadeiras vazias e chorei baixinho.
Os dias tornaram-se todos iguais: acordar cedo, ir ao supermercado contar moedas para comprar pão e leite, ver televisão até adormecer no sofá. A solidão tornou-se uma presença constante na minha vida.
Um dia encontrei a Dona Rosa no mercado.
— Então Teresa, há quanto tempo! E a tua Mariana? Nunca mais a vi contigo…
Senti um nó na garganta mas forcei um sorriso:
— Está ocupada com o trabalho e o miúdo…
Ela pousou a mão no meu braço:
— Filha é sempre filha. Dá-lhe tempo.
Mas quanto tempo é preciso até uma mãe deixar de sentir saudades? Até deixar de esperar uma chamada ou uma visita?
Comecei a escrever cartas à Mariana que nunca cheguei a enviar. Desabafava nelas tudo aquilo que não conseguia dizer-lhe cara a cara:
“Querida filha,
Não sei onde errei contigo. Sempre tentei dar-te tudo o que podia — talvez até demais. Agora sinto que só me procuras quando precisas de ajuda material e isso dói-me mais do que possas imaginar…”
Numa dessas noites em claro decidi ligar-lhe outra vez. Atendeu ao fim de vários toques:
— O que foi mãe?
— Só queria saber se está tudo bem convosco… Sinto saudades vossas.
— Mãe, agora não posso falar — respondeu apressada — depois ligo-te.
Nunca mais ligou.
O tempo foi passando e fui aprendendo a viver com esta ausência forçada. Comecei a frequentar um grupo de leitura na biblioteca do bairro para ocupar as tardes vazias. Fiz novas amizades com outras mulheres da minha idade — todas com histórias parecidas: filhos distantes, netos ausentes, silêncios dolorosos.
Às vezes pergunto-me se esta distância é culpa minha ou se faz parte da vida moderna: filhos demasiado ocupados para os pais; famílias separadas por mal-entendidos ou por falta de tempo; amores condicionados por aquilo que se pode dar ou receber materialmente.
Hoje olho para as fotografias antigas da Mariana em criança e sinto uma mistura de orgulho e tristeza. Dei-lhe tudo o que pude — mas será que lhe dei o suficiente do que realmente importa?
E vocês? Acham que o amor entre mãe e filha pode sobreviver quando deixa de haver dinheiro pelo meio? Ou será que nos tempos de hoje tudo se resume mesmo a contas feitas à mesa da cozinha?