Quando o Amor se Parte: Entre a Guarda dos Filhos e os Sonhos Perdidos

— Não consigo mais, Marta. Isto não é vida para mim. — A voz do Rui ecoou pela cozinha, enquanto eu tentava acalmar o Tomás, que chorava porque queria dormir com o boneco preferido que estava na casa do pai.

Fiquei parada, com a mão a tremer sobre a bancada. O cheiro do café frio misturava-se com o perfume agridoce da ansiedade. Olhei para ele, olhos vermelhos, barba por fazer, e percebi que aquele homem à minha frente já não era o mesmo com quem casei há dez anos atrás. O Rui estava exausto, mas eu também. Só que eu não podia desistir.

— Não é vida para ti? E para mim, Rui? Achas que isto é fácil para algum de nós? — tentei conter as lágrimas, mas a voz saiu-me trémula.

Ele desviou o olhar, fixando-se na janela embaciada pela chuva de novembro. — Eu tentei, Marta. Juro que tentei. Mas sinto-me preso. Sinto falta da minha liberdade, dos meus amigos, das noites em que podia sair sem pensar em fraldas ou horários de escola.

O Tomás continuava a chorar e a Leonor, com apenas cinco anos, olhava para nós com aqueles olhos grandes e assustados. Senti uma pontada no peito. Não era só o nosso casamento que tinha acabado — era também a ideia de família que eu tinha construído desde miúda.

O divórcio foi rápido. O juiz acreditou no discurso do Rui: um pai dedicado, pronto para partilhar tudo comigo. Os meus pais diziam-me para ter esperança, que ele ia mudar. Mas eu conhecia-o melhor do que ninguém. Sabia que aquela promessa era feita de medo e não de convicção.

As primeiras semanas foram um caos. A Leonor fazia perguntas difíceis: — Porque é que o pai não vem buscar-nos hoje? — E eu inventava desculpas: — O pai está cansado, querida. Amanhã ele liga.

Mas amanhã nunca chegava. O Rui começou a cancelar fins-de-semana, a esquecer-se dos aniversários dos miúdos, a aparecer cada vez menos. Quando vinha, estava ausente, agarrado ao telemóvel ou a discutir comigo por coisas pequenas: os horários das atividades, as roupas trocadas, os trabalhos de casa esquecidos.

Uma noite, depois de deitar as crianças, sentei-me no sofá e chorei como há muito não chorava. Senti-me sozinha, traída e culpada. Será que tinha feito tudo certo? Será que devia ter lutado mais pelo nosso casamento? Ou será que estava a falhar como mãe?

A minha mãe ligava todos os dias: — Tens de ser forte pelos teus filhos, Marta. Eles precisam de ti agora mais do que nunca.

Mas eu também precisava de alguém. Sentia falta de conversar com adultos sobre coisas banais — o preço do pão, o trânsito na A1, as novelas da noite. Sentia falta de ser vista como mulher e não apenas como mãe.

O Rui começou a sair mais à noite. Vi fotos dele no Facebook com amigos antigos, sorrisos largos em bares do Bairro Alto. Uma amiga em comum contou-me que ele dizia sentir-se “renascido”, livre das amarras da paternidade.

Numa manhã fria de janeiro, o Tomás acordou com febre alta. Liguei ao Rui — precisava de ajuda para levá-lo ao hospital. Ele atendeu com voz arrastada:

— Marta, não posso agora. Estou fora de Lisboa.

— Fora? Mas o teu filho está doente! — gritei, incapaz de conter a raiva.

— Desculpa… vê isso tu, sim? Depois ligo.

Desliguei sem resposta. Senti-me esmagada por uma onda de desespero e raiva. Como é que alguém podia virar costas assim aos próprios filhos?

Os meses passaram e fui aprendendo a viver sem ele. A rotina tornou-se mais leve quando deixei de esperar pelo impossível. Comecei a pedir ajuda à minha irmã para ficar com as crianças quando precisava de respirar fundo ou simplesmente ir ao supermercado sozinha.

A Leonor desenhava sempre três pessoas nas folhas da escola: ela, o Tomás e eu. Perguntei-lhe um dia:

— E o pai?

Ela encolheu os ombros: — O pai está sempre longe.

O Tomás começou a gaguejar quando falava do pai. A educadora chamou-me à escola:

— Marta, ele precisa de estabilidade. Talvez seja bom procurar apoio psicológico.

Senti-me derrotada. Como é que se explica a uma criança que o pai escolheu outra vida?

Numa tarde de primavera, o Rui apareceu sem avisar. Trazia um saco cheio de brinquedos novos e um sorriso forçado.

— Vim ver os miúdos — disse.

Olhei para ele com desconfiança:

— Eles não precisam de brinquedos novos, Rui. Precisam de ti.

Ele baixou os olhos:

— Eu sei… mas não sei como voltar atrás.

Nesse momento percebi: o Rui estava perdido entre o desejo de ser livre e o peso da responsabilidade. E eu? Eu já não podia esperar por ele.

Comecei a reconstruir-me aos poucos. Voltei a estudar à noite para tentar arranjar um emprego melhor. Fiz novas amizades no grupo de pais da escola e até me atrevi a sair para um café sozinha numa sexta-feira à noite.

Os meus filhos cresceram rodeados de amor — meu, dos avós, dos tios e até dos vizinhos que se tornaram família improvisada. O Rui continuou ausente, mas deixou de ser o centro da nossa dor.

Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente daquela que chorava sozinha no sofá. Aprendi que não somos menos família por sermos só três à mesa. Aprendi a perdoar-me pelas falhas e a celebrar as pequenas vitórias: um sorriso dos meus filhos, uma noite sem pesadelos, um abraço apertado antes de dormir.

Às vezes pergunto-me: será que algum dia os meus filhos vão perdoar o pai? Será que vão entender as escolhas dele? E eu — serei capaz de lhes ensinar que amar também é saber partir?