Quando o Amor se Mede em Euros: O Preço de Ser Pai

— Então é isso, Mariana? Só me ligas quando precisas de dinheiro?

O silêncio do outro lado da linha era ensurdecedor. Senti o coração apertar, como se cada batida fosse um grito abafado. Olhei para a fotografia dela em criança, pendurada na parede da sala, e quase não reconheci a mulher fria e distante que agora me respondia:

— Pai, não é isso… Mas sabes que as coisas estão difíceis. O Miguel precisa de tanta coisa e eu…

— E eu? — interrompi, com a voz embargada. — Eu preciso do meu neto. Preciso de ti. Não sou só uma carteira ambulante, Mariana.

Ela suspirou, impaciente. — Não compliques, pai. Se não podes ajudar, então não podes. Mas não me venhas com dramas.

Desligou. Fiquei ali, com o telefone na mão, a sentir-me mais velho do que nunca. O relógio da cozinha marcava 19h12, mas para mim o tempo parecia ter parado naquele instante.

Sempre trabalhei muito. Fui serralheiro durante trinta anos na Marinha Grande, depois ainda fiz uns biscates em construção civil para garantir que à Mariana nada faltava. A mãe dela morreu cedo — um cancro traiçoeiro levou-a quando a Mariana tinha só dez anos. Desde então, fui pai e mãe, cozinheiro e enfermeiro, amigo e confidente. Nunca me queixei.

Quando ela foi para a universidade em Coimbra, vendi o carro para lhe pagar o quarto e os livros. Lembro-me de passar noites sem dormir, preocupado com as contas, mas sempre com orgulho por vê-la crescer. Quando nasceu o Miguel, há seis anos, senti que tinha valido tudo a pena.

Nos primeiros anos, era eu quem ia buscar o Miguel ao infantário quando ela fazia turnos no hospital. Fazia-lhe sopa de legumes e inventava histórias sobre dragões e castelos para o adormecer. O sorriso dele era o meu mundo.

Mas há dois anos reformei-me. A pensão mal chega para as despesas da casa e dos remédios. Tive de dizer à Mariana que já não podia ajudar como antes. Foi aí que tudo mudou.

As visitas começaram a rarear. Primeiro eram desculpas: muito trabalho, Miguel doente, trânsito impossível. Depois vieram os silêncios. No Natal passado, nem sequer apareceu — mandou uma mensagem seca: “Desculpa pai, não conseguimos ir.”

Tentei ligar-lhe várias vezes. Sempre ocupado ou sem resposta. Quando finalmente atendeu, foi para pedir dinheiro para pagar uma atividade do Miguel na escola privada onde o pôs — contra o meu conselho.

— Mariana, não posso — disse-lhe nesse dia. — Não tenho como.

— Então não sei quando posso ir aí — respondeu ela, fria.

Senti-me descartado como um velho jornal.

Os vizinhos começaram a perguntar pelo Miguel. A dona Rosa do 2º esquerdo dizia sempre: “O seu neto faz-lhe falta nos olhos.” Eu sorria amarelo e mudava de assunto.

Uma noite, depois de mais uma chamada ignorada, sentei-me à mesa da cozinha e escrevi-lhe uma carta:

“Minha filha,

Sei que a vida não é fácil. Sei que trabalhas muito e que queres dar o melhor ao Miguel. Mas eu também sou gente. Também sinto falta de ti e do meu neto. Não quero ser apenas alguém a quem pedes dinheiro quando precisas. Quero ser família.

Se algum dia quiseres falar comigo sem ser por causa de contas ou despesas, estarei aqui.

Com amor,
Pai”

Nunca respondeu.

Os dias passaram lentos. Oiço os risos das crianças no parque em frente à minha janela e imagino o Miguel entre elas. Pergunto-me se ainda se lembra das histórias dos dragões ou se já me esqueceu.

No café do senhor António, onde vou todas as manhãs ler o jornal, todos sabem da minha mágoa. O António tenta animar-me:

— Ó Joaquim, as mulheres hoje são muito independentes… Mas um dia ela vai perceber o valor do pai que tem.

Mas eu sei que não é só independência. É ingratidão misturada com ressentimento antigo — talvez por não ter tido mãe, talvez por eu ter sido demasiado duro nalguns momentos.

Uma tarde chuvosa de março, bati à porta dela sem avisar. O Miguel abriu a porta com olhos espantados:

— Avô! — gritou ele, abraçando-me as pernas.

O meu coração quase explodiu de alegria. Mas Mariana apareceu logo atrás dele:

— O que estás aqui a fazer?

— Vim ver-vos — respondi, tentando sorrir.

Ela olhou-me de cima a baixo como se eu fosse um estranho.

— Não podes aparecer assim sem avisar. Estamos ocupados.

— Só queria dar um beijo ao meu neto…

Ela suspirou e puxou o Miguel para dentro:

— Agora não dá. Vai-te embora, pai.

Fiquei ali à porta, com a chuva a cair-me nos ombros e uma dor funda no peito.

Na semana seguinte recebi uma mensagem dela: “Enquanto não perceberes os nossos limites, não faz sentido vires cá.”

Comecei a duvidar de mim próprio: teria sido mau pai? Teria falhado em algum momento crucial? Ou será que o amor se mede mesmo em euros?

Os dias tornaram-se todos iguais: café pela manhã, sopa ao almoço, televisão à noite. Às vezes apanho-me a falar sozinho:

— Se ao menos ela percebesse…

No supermercado encontro outras avós e avôs com os netos pela mão e sinto uma inveja amarga misturada com vergonha.

No aniversário do Miguel comprei-lhe um livro de aventuras e deixei-o na caixa do correio deles com um bilhete: “Para o meu explorador favorito.” Nunca tive resposta.

A solidão pesa mais ao fim do dia. Sento-me na varanda a ver as luzes da cidade acenderem-se devagarinho e penso em tudo o que dei à Mariana: tempo, dinheiro, amor… E agora parece que nada disso conta se não vier acompanhado de uma transferência bancária.

Às vezes sonho com a minha mulher — ela aparece-me jovem e sorridente, dizendo: “Não desistas deles.” Mas acordo sempre com lágrimas nos olhos.

No Natal seguinte decidi não comprar presentes nem fazer jantar especial. Fui à missa sozinho e rezei por eles. Pedi apenas uma coisa: que Mariana voltasse a lembrar-se do pai que sempre esteve lá.

Agora escrevo estas palavras sem saber se algum dia ela as lerá ou se algum dia terei o Miguel outra vez nos meus braços.

Pergunto-me: será que falhei como pai? Ou será que há amores que só existem enquanto há dinheiro?

E vocês? Acham que um filho pode esquecer tudo por causa de dinheiro? O que fariam no meu lugar?