Quando o Amor se Desfaz: O Peso de uma Família Reconstituída
— Não me venhas com histórias, Inês! — gritou o Rui, batendo com a mão na mesa da cozinha, tão forte que os talheres saltaram. O Tomás, o meu filho de dez anos, encolheu-se na cadeira, os olhos arregalados. Os filhos do Rui, a Mariana e o Diogo, fingiram não ouvir, mas eu sabia que estavam atentos a cada palavra.
Naquele momento, percebi que a nossa casa já não era um lar. Era um palco de acusações e silêncios pesados. Lembro-me de pensar: como é que chegámos aqui? Quando casei com o Rui, há cinco anos, achei que estava a dar ao Tomás uma família completa. O Rui era divertido, trabalhador, e parecia adorar o meu filho como se fosse dele. Os meus pais e os dele davam-se bem, os avós faziam questão de tratar todos os netos por igual. Nos primeiros meses, sentia-me abençoada.
Mas a harmonia era frágil. Pequenas coisas começaram a mudar. O Rui passou a corrigir o Tomás por tudo e por nada: “Não deixes os sapatos aí!”, “Fala mais baixo!”, “Já devias saber isto à tua idade!”. Com os filhos dele era diferente; se a Mariana deixava a mochila no sofá, ele sorria e dizia: “És mesmo distraída, filha”. Comecei a notar que o Tomás se fechava mais em si mesmo. Uma noite, ouvi-o chorar baixinho no quarto. Sentei-me ao lado dele e perguntei:
— O que se passa, filho?
Ele hesitou antes de responder:
— O Rui não gosta de mim como gosta da Mariana e do Diogo.
O meu coração partiu-se em mil pedaços. Tentei falar com o Rui sobre isso, mas ele irritou-se:
— Estás a dizer que trato mal o teu filho? Não tens vergonha?
A partir daí, as discussões tornaram-se frequentes. Os meus pais começaram a afastar-se das reuniões de família. A minha mãe dizia-me ao telefone:
— Inês, não te esqueças de quem eras antes dele. O Tomás precisa de ti.
Mas eu sentia-me presa entre dois mundos: queria proteger o meu filho, mas também queria acreditar que podia salvar este casamento.
As coisas pioraram quando a ex-mulher do Rui apareceu à porta um sábado de manhã. Trazia uma expressão dura e os olhos vermelhos.
— Preciso de falar contigo — disse-me ela, ignorando o Rui.
Fomos até ao jardim. Ela olhou-me nos olhos:
— O Rui sempre foi assim. Quando as coisas não correm como ele quer, faz birra ou castiga quem está mais vulnerável. Eu aguentei anos disso. Não deixes que ele faça o mesmo ao teu filho.
Senti um nó na garganta. Tinha medo de admitir que ela tinha razão.
Nessa noite, depois de todos irem dormir, sentei-me na sala escura e chorei em silêncio. Lembrei-me do dia em que conheci o Rui: ele fez-me rir quando eu achava que nunca mais ia ser feliz depois do divórcio do pai do Tomás. Mas agora… agora sentia-me sozinha na minha própria casa.
Os meses seguintes foram um teste à minha sanidade. O Tomás começou a ter más notas na escola. A professora chamou-me:
— Ele está distraído, parece triste. Alguma coisa mudou em casa?
A Mariana começou a desafiar-me abertamente:
— Tu não és a minha mãe! — gritava quando eu tentava impor regras.
O Diogo fechou-se no quarto com os auscultadores nos ouvidos, ignorando tudo à volta.
O Rui trabalhava cada vez mais horas e chegava tarde, muitas vezes já com o cheiro a cerveja. Quando estava em casa, era só para ralhar ou para se fechar no escritório.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre as tarefas domésticas — porque “o Tomás nunca faz nada direito” — perdi a cabeça:
— Basta! Isto não é vida para ninguém! Ou mudamos alguma coisa ou eu vou-me embora!
O Rui olhou para mim como se eu fosse uma estranha.
— Então vai! — gritou ele. — Se não sabes ser mãe nem mulher…
Fui para o quarto e comecei a fazer as malas do Tomás e as minhas. O meu coração batia tão depressa que mal conseguia respirar. O Tomás apareceu à porta:
— Mãe… vamos mesmo embora?
Olhei para ele e vi nos seus olhos uma mistura de medo e esperança.
— Vamos, filho. Chegou a altura de pensarmos em nós.
Na manhã seguinte, saímos cedo. Fomos para casa dos meus pais. A minha mãe abraçou-nos com força.
— Fizeste o que tinhas de fazer — sussurrou ela.
Os primeiros dias foram difíceis. O Tomás chorava à noite, dizia que sentia falta dos irmãos. Eu sentia-me culpada por não ter conseguido manter a família unida. Mas aos poucos fomos recuperando alguma paz.
O Rui tentou ligar várias vezes. Mandou mensagens agressivas: “Nunca vais encontrar ninguém como eu!”, “Estás a destruir a vida dos miúdos!”. Ignorei-as todas.
Passaram-se meses até conseguir respirar fundo sem sentir um peso no peito. O Tomás voltou a sorrir. Voltou a brincar com os primos, voltou a ser criança.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres vivem presas numa fachada de felicidade? Quantos filhos crescem a sentir-se menos amados numa casa onde devia haver amor para todos?
Será que fiz bem em desistir tão depressa? Ou será que foi coragem sair antes que fosse tarde demais? E vocês… já sentiram que estavam a viver uma mentira só para manter as aparências?