Quando o Amor se Apaga: O Silêncio Entre Nós
— Vais mesmo comer isso tudo outra vez, Rui? — perguntei, tentando manter a voz firme, mas já sem conseguir esconder o cansaço. O prato dele transbordava de arroz de pato, e o olhar que me lançou foi de quem já não queria discutir.
— Deixa-me em paz, Ana. Estou cansado, está bem? — respondeu, sem sequer levantar os olhos da televisão.
Naquele momento, percebi que a distância entre nós era maior do que a mesa de jantar. Era um abismo. Lembro-me de quando nos conhecemos, na festa dos Santos Populares em Alfama. Ele fazia-me rir com piadas parvas e dançávamos até os pés doerem. Agora, mal trocávamos palavras que não fossem sobre contas ou recados.
No início do casamento, tudo parecia possível. Comprámos um T2 em Odivelas, sonhámos com filhos, viagens e domingos preguiçosos no sofá. Mas os anos passaram e, com eles, vieram as rotinas. Rui começou a chegar cada vez mais tarde do trabalho. Eu tentava manter a casa viva: flores frescas na mesa, jantares diferentes, convites para caminhadas ao fim de semana. Mas ele só queria descansar.
— Porque é que não vens comigo ao parque? Faz-te bem apanhar ar — sugeria eu.
— Não me apetece, Ana. Vai tu — respondia ele, sem sequer desviar os olhos do telemóvel.
Comecei a sentir-me invisível. O Rui engordou bastante nos últimos anos. Não era só uma questão de aparência; era o reflexo do desleixo com tudo à volta: comigo, com ele próprio, com o nosso casamento. Tentei conversar:
— Rui, sinto que já não olhas para mim. Já não conversamos como antes. Sinto falta de nós.
Ele suspirou, impaciente:
— Estás sempre a reclamar. Nunca estás satisfeita.
Aquela resposta doeu mais do que qualquer silêncio. Fui-me fechando em mim mesma. No trabalho, as colegas perguntavam se estava tudo bem. Eu sorria e dizia que sim, mas por dentro sentia-me a afundar.
A minha mãe percebeu antes de todos:
— Filha, tu não estás feliz. O Rui trata-te como se fosses parte da mobília.
— Mãe, as coisas mudam… — tentei justificar.
— Mudam, sim. Mas não deviam mudar assim.
As discussões tornaram-se mais frequentes. Pequenas coisas tornavam-se grandes batalhas: o lixo por levar, a loiça por lavar, a falta de um simples “bom dia”. Uma noite, depois de mais uma discussão sobre nada e sobre tudo, fechei-me na casa de banho e chorei baixinho para não acordar os vizinhos.
No Natal passado, tentei reacender alguma chama. Preparei um jantar especial, comprei uma camisa nova para ele e vesti o vestido vermelho que ele adorava quando namorávamos.
— Estás bonita — disse ele, sem entusiasmo.
O jantar foi um fiasco. Falámos sobre o preço do bacalhau e sobre o trânsito na Segunda Circular. Quando tentei tocar-lhe na mão, ele afastou-se para pegar no telemóvel.
Senti-me ridícula. Senti-me sozinha.
Comecei a sair mais com as amigas. Ia ao cinema com a Marta e a Joana, passeava pelo Chiado sozinha só para sentir o cheiro das castanhas assadas e ouvir o burburinho da cidade. Em casa, Rui nem notava se eu chegava tarde ou cedo.
Um dia, ao arrumar a roupa dele, encontrei um recibo de um restaurante caro no bolso do casaco. Não era um sítio onde costumássemos ir juntos. O coração bateu mais depressa. Confrontei-o:
— Foste jantar fora sem mim?
Ele encolheu os ombros:
— Era um jantar de trabalho.
Não insisti. Não tinha forças para mais uma discussão. Mas aquela noite dormi no sofá.
A minha irmã dizia-me para não desistir:
— Todos os casamentos passam por fases más. Tens de lutar!
Mas lutar sozinha é como remar contra a maré sem barco nem remos.
Os meses passaram e fui deixando de tentar. Deixei de cozinhar pratos especiais, deixei de comprar flores para a sala. A casa ficou tão fria quanto nós dois.
Um sábado à tarde, ouvi-o ao telefone na varanda:
— Não posso agora… Sim… Ela está aqui…
Quando entrei na varanda, ele calou-se abruptamente.
— Quem era? — perguntei.
— Um colega do trabalho — respondeu seco.
Não insisti. Já não queria saber se havia outra pessoa ou apenas uma vida secreta feita de silêncios e mentiras pequenas.
Numa noite chuvosa de março, tomei uma decisão enquanto olhava para o meu reflexo no espelho embaciado da casa de banho: merecia mais do que aquilo. Mereço ser vista, ouvida e amada.
No dia seguinte, sentei-me à mesa com ele:
— Rui, isto acabou para mim. Não quero continuar assim.
Ele olhou-me como se só então me visse pela primeira vez em anos:
— Vais mesmo desistir?
— Não sou eu que desisto… Nós é que já desistimos há muito tempo.
Arrumei algumas roupas numa mala pequena e fui para casa da minha mãe. Chorei muito nessa noite — não pelo fim do casamento em si, mas pelo luto da mulher que fui e que deixei morrer aos poucos dentro daquela casa.
Os meses seguintes foram difíceis: dividir bens, explicar à família e aos amigos o que aconteceu sem culpar ninguém diretamente. Ouvi muitos julgamentos:
— Devias ter tentado mais…
— Os homens são todos assim…
— Vais arrepender-te…
Mas também ouvi palavras de força:
— Fizeste bem em escolher-te a ti própria.
— A vida recomeça sempre que tu quiseres.
Hoje vivo sozinha num pequeno apartamento em Benfica. Ainda sinto falta do cheiro do café pela manhã e da rotina partilhada — mesmo que fosse feita de silêncios desconfortáveis. Mas aprendi a gostar da minha própria companhia outra vez.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem assim caladas dentro das suas casas? Quantos casamentos morrem lentamente sem ninguém dar por isso? Será que vale a pena sacrificar quem somos só para manter uma fachada?