Quando o Amor se Apaga: O Silêncio de Clara

— Não vais mesmo dizer nada? — perguntou o Rui, a voz tensa, os olhos fixos no telemóvel como se ali estivesse a resposta para tudo o que nos faltava.

Fiquei a olhar para ele, sentada à ponta da mesa da cozinha, com a chávena de café já fria entre as mãos. O relógio marcava sete e meia da manhã, e a casa estava mergulhada naquele silêncio pesado que só os casais infelizes conhecem. O nosso filho, o Tiago, ainda dormia. Era mais um dia igual aos outros, mas dentro de mim tudo estava diferente.

Queria responder-lhe. Queria gritar, chorar, atirar-lhe à cara tudo o que me magoava há meses. Mas limitei-me a encolher os ombros. O Rui suspirou alto, levantou-se e saiu para o trabalho sem olhar para trás. A porta bateu com força. E eu fiquei ali, sozinha, a sentir o eco do vazio.

Nunca pensei que o amor acabasse assim — não num grito, mas num silêncio. Lembro-me de quando conheci o Rui, nas festas de São João em Braga. Ele era divertido, espontâneo, fazia-me rir até às lágrimas. Casámo-nos cedo demais, talvez. Tínhamos sonhos pequenos: uma casa modesta, um filho, férias no Algarve uma vez por ano. Mas a vida foi-se tornando rotina, e a rotina foi-se tornando distância.

O primeiro sinal foi o desinteresse. Já não me apetecia contar-lhe como tinha corrido o meu dia na escola primária onde dou aulas. As pequenas vitórias com os miúdos, as birras, os desenhos que me ofereciam — tudo isso deixara de importar-lhe. Ou talvez fosse eu que já não queria partilhar. Quando ele perguntava “Como foi?”, respondia sempre “Normal”.

O segundo sinal foi a ausência de toque. Dormíamos juntos, mas separados por um abismo invisível. Lembro-me da última vez que fizemos amor: foi rápido, mecânico, sem paixão. Depois disso, comecei a evitar o contacto físico. Se ele me tocava no ombro ou tentava abraçar-me na cozinha, eu encolhia-me como um animal assustado.

O terceiro sinal foi o ressentimento. Pequenas coisas tornaram-se insuportáveis: o modo como ele mastigava de boca aberta, as piadas sem graça ao jantar com os meus pais, a forma como nunca ajudava nas tarefas domésticas sem que eu pedisse. Um dia apanhei-me a desejar que ele chegasse tarde do trabalho só para não ter de falar com ele.

A minha mãe percebeu antes de mim. “Clara, estás tão magra… Está tudo bem contigo e com o Rui?” — perguntou-me um domingo à tarde enquanto descascávamos batatas para o almoço de família.

— Está tudo bem, mãe — menti.

Ela olhou-me nos olhos e vi ali um espelho do meu próprio sofrimento. A minha mãe também viveu um casamento infeliz durante anos até ao divórcio tardio. Sempre me disse: “Não te percas por ninguém”. E ali estava eu, perdida.

O Tiago começou a perguntar porque é que o pai já não brincava com ele ao fim-de-semana. “O pai está cansado”, dizia-lhe eu. Mas sabia que era mentira. O Rui estava tão ausente quanto eu — cada um fechado no seu mundo.

Uma noite, depois de adormecer o Tiago, sentei-me no sofá com um copo de vinho barato e liguei à minha melhor amiga, a Joana.

— Não aguento mais — confessei-lhe entre lágrimas.

— Tens de falar com ele, Clara. Não podes viver assim — respondeu ela.

Mas como é que se diz a alguém que já não se ama? Como é que se destrói uma família sem destruir também uma criança inocente?

Os dias passaram arrastados. O Rui começou a chegar cada vez mais tarde a casa. Uma noite apareceu com perfume diferente e uma camisa nova.

— Foste sair? — perguntei.

Ele hesitou antes de responder:

— Fui beber um copo com colegas do escritório.

Não insisti. Não tinha forças para ciúmes ou discussões.

No aniversário do Tiago fizemos um esforço para sorrir nas fotografias. Os meus pais trouxeram bolo caseiro e os avós paternos trouxeram brinquedos caros para compensar a ausência emocional do filho deles. Quando todos se foram embora, fiquei a arrumar os restos da festa sozinha na cozinha. O Rui estava na sala a ver futebol.

Nesse momento percebi: estava sozinha há muito tempo.

Na semana seguinte marquei consulta com uma psicóloga. Chorei durante toda a primeira sessão. Contei-lhe tudo: o vazio, o medo de magoar o Tiago, a culpa por já não amar o Rui.

— O que é que quer para si? — perguntou-me ela.

Fiquei em silêncio muito tempo antes de responder:

— Quero voltar a sentir-me viva.

Comecei a escrever cartas ao Rui que nunca cheguei a entregar. Cartas onde lhe dizia tudo: como me sentia invisível ao lado dele, como me doía ver o nosso filho crescer num ambiente sem amor, como desejava fugir dali e recomeçar do zero.

Uma noite decidi falar com ele. Esperei que o Tiago adormecesse e sentei-me à mesa da cozinha onde tudo começou.

— Rui, precisamos de conversar — disse-lhe.

Ele olhou-me assustado.

— O que foi agora?

— Eu… já não te amo — confessei num sussurro.

O silêncio caiu sobre nós como uma sentença. Ele ficou imóvel durante minutos intermináveis antes de explodir:

— Então é isso? Vais desistir assim? E o Tiago? E tudo o que construímos?

Chorei baixinho enquanto ele me acusava de egoísmo, de ingratidão, de destruir a nossa família por um capricho qualquer.

— Não é um capricho — tentei explicar — É sobrevivência.

Ele saiu de casa nessa noite e só voltou dois dias depois para buscar algumas roupas. O Tiago percebeu logo que algo estava errado e chorou durante dias seguidos. A minha mãe veio ajudar-me com as refeições e as tarefas da casa enquanto eu tentava manter-me inteira para não desabar à frente do meu filho.

Os meses seguintes foram um caos: advogados, papéis do divórcio, discussões sobre guarda partilhada e pensão de alimentos. Senti-me culpada todos os dias por ter sido eu a tomar a decisão final. Mas também senti alívio — uma leveza nova no peito cada vez que acordava sozinha na minha cama.

Hoje olho para trás e pergunto-me: teria sido diferente se tivéssemos falado mais cedo? Se tivéssemos pedido ajuda antes? Ou será que há amores destinados a morrer devagarinho até ao silêncio total?

E vocês? Já sentiram este vazio? Já tiveram coragem de recomeçar mesmo quando tudo parecia perdido?