Quando o Amor se Apaga: O Dia em que Percebi que Já Não Era Amada
— Não sei se ainda faz sentido, Marta. — A voz do Rui ecoou pela cozinha, baixa, quase um sussurro, mas pesada como uma sentença. Eu estava de costas para ele, a lavar a loiça do jantar, e por um segundo pensei ter ouvido mal. Mas não. O silêncio que se seguiu foi mais eloquente do que qualquer grito.
Senti as mãos tremerem, a água escorrendo entre os dedos, misturada com lágrimas que teimavam em cair sem permissão. O cheiro do arroz queimado ainda pairava no ar, um lembrete cruel de como até as pequenas coisas já não corriam bem entre nós. Lembrei-me de quando o Rui me fazia rir só com um olhar, de como partilhávamos segredos ao adormecer. Agora, mal trocávamos palavras.
— O que é que queres dizer com isso? — perguntei, tentando manter a voz firme. Mas ela saiu trémula, quase infantil.
Ele suspirou, sentou-se à mesa e ficou a olhar para as mãos. — Não sei… Sinto-me distante. Como se estivéssemos a viver vidas paralelas. — Olhou-me finalmente nos olhos. — Já não sinto o mesmo.
O chão fugiu-me dos pés. Tantos anos juntos, uma filha de sete anos a dormir no quarto ao lado, uma casa construída com sacrifício e sonhos partilhados. E agora isto. Tentei lembrar-me do momento exato em que tudo começou a desmoronar, mas só me vinham à cabeça pequenas cenas: ele a chegar tarde do trabalho, eu a adormecer sozinha no sofá, discussões sobre dinheiro, sobre a escola da Leonor, sobre nada e sobre tudo.
— Então é isso? Vais desistir? — A raiva misturava-se ao medo. — E a Leonor? E nós?
Ele desviou o olhar. — Não sei o que fazer, Marta. Só sei que não posso continuar a fingir.
Naquela noite não dormi. Fiquei sentada na cama, a olhar para o teto, ouvindo o som da chuva a bater na janela. Lembrei-me da minha mãe, da forma como ela sempre dizia que o amor era trabalho diário. Mas ninguém nos ensina o que fazer quando só um está disposto a trabalhar.
No dia seguinte, tentei agir normalmente. Preparei o pequeno-almoço para a Leonor, penteei-lhe o cabelo loiro como ela gosta, com duas tranças apertadas. O Rui saiu cedo, sem se despedir. Senti-me invisível.
No trabalho, as colegas notaram o meu ar ausente. A Ana puxou-me de lado na pausa para o café.
— Está tudo bem contigo? Pareces tão longe…
Quis dizer-lhe tudo: o medo de perder a família, a vergonha de admitir que talvez já não fosse suficiente para o Rui. Mas limitei-me a encolher os ombros.
— São só preocupações lá de casa.
Ela apertou-me a mão. — Se precisares de falar…
À noite, tentei conversar com o Rui. Sentei-me ao lado dele no sofá, mas ele estava absorto no telemóvel.
— Podemos falar?
Ele nem levantou os olhos. — Agora não, Marta. Estou cansado.
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Lembrei-me das palavras da psicóloga que tinha ouvido num podcast: “Quando o diálogo desaparece e os gestos de carinho se tornam raros, é sinal de que algo mudou.” Era isso mesmo. O Rui já não me tocava sem ser por obrigação; já não me perguntava como tinha sido o meu dia; já não ria das minhas piadas nem partilhava as dele.
Os dias passaram assim: silêncios longos à mesa, Leonor a tentar animar-nos com desenhos e histórias da escola, eu a fingir normalidade enquanto sentia o coração apertado. Comecei a reparar em outros sinais: ele evitava contacto visual; passava mais tempo fora de casa; até os aniversários eram esquecidos ou lembrados à última hora.
Uma noite, depois de deitar a Leonor, sentei-me sozinha na varanda com um copo de vinho barato. Liguei à minha irmã, Inês.
— Não aguento mais isto — confessei-lhe entre soluços.
Ela ficou em silêncio um momento antes de responder:
— Marta… às vezes é preciso coragem para admitir que acabou. Mas também é preciso coragem para lutar pelo que queremos.
— E se eu for a única a querer lutar?
Ela suspirou. — Então talvez seja altura de pensares em ti.
As palavras dela ficaram comigo durante dias. Comecei a observar-me ao espelho: olheiras fundas, cabelo apanhado à pressa, roupas escolhidas sem cuidado. Quando foi a última vez que pensei em mim? Que fiz algo só porque me fazia feliz?
Numa sexta-feira à noite, depois de mais uma discussão sobre nada — desta vez sobre quem devia ir buscar Leonor à escola — percebi que estava exausta. Não só do Rui, mas de mim mesma naquela relação.
No sábado seguinte marquei uma consulta com uma psicóloga. Sentei-me no consultório e contei-lhe tudo: os silêncios, os olhares vazios, o medo de ficar sozinha.
— Marta — disse ela com voz calma — às vezes amar também é saber deixar ir.
Chorei como há muito não chorava. Saí dali mais leve e decidi falar com o Rui uma última vez.
— Precisamos decidir o que vamos fazer — disse-lhe naquela noite.
Ele olhou-me finalmente nos olhos e vi ali tristeza e alívio ao mesmo tempo.
— Acho que precisamos de tempo separados — respondeu.
A decisão foi tomada sem gritos nem lágrimas. Só um cansaço imenso e uma estranha paz.
Contar à Leonor foi o mais difícil. Sentei-a ao meu colo e expliquei-lhe devagarinho:
— O pai vai morar noutro sítio por um tempo, mas vamos continuar a ser família.
Ela chorou e eu chorei com ela. Mas prometi-lhe que tudo ia correr bem.
Os meses seguintes foram duros: noites solitárias, contas para pagar sozinha, olhares curiosos dos vizinhos e perguntas indiscretas dos colegas de trabalho. Mas também houve momentos bons: risos com a Leonor na cozinha enquanto fazíamos bolos; tardes no parque; reencontros comigo mesma diante do espelho.
Hoje olho para trás e vejo que sobrevivi ao fim do amor. Aprendi a reconhecer os sinais: quando as conversas morrem; quando os gestos de carinho desaparecem; quando nos sentimos mais sós acompanhados do que sozinhos.
Às vezes pergunto-me: será possível amar outra vez depois de tanto vazio? Ou será que aprendemos finalmente a amar-nos primeiro? E vocês? Já sentiram o amor desaparecer sem saberem bem quando começou?