Quando o Amor se Apaga e Volta: A História de Maria do Carmo
— Maria do Carmo, precisamos de falar. — A voz do António ecoou pela cozinha, carregada de uma gravidade que eu nunca lhe ouvira. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o frio da manhã, mas o que realmente gelou o meu corpo foi o tom dele.
Olhei-o, as mãos ainda húmidas do detergente, e soube, naquele instante, que algo estava prestes a desabar. Não era só o casamento; era a casa, os almoços de domingo, as conversas à mesa, os risos dos nossos filhos, tudo aquilo que eu julgava sólido como as paredes que nos abrigavam.
— O que se passa, António? — perguntei, tentando manter a voz firme.
Ele desviou o olhar para a janela, onde a chuva miudinha caía sobre o quintal. — Conheci alguém. Não posso continuar assim. Preciso de sair desta casa.
O silêncio caiu pesado. Senti o coração a bater-me no peito como se quisesse fugir dali. Vinte e sete anos juntos. Três filhos criados com sacrifício. Quantas vezes adiei sonhos para manter esta família unida? Quantas vezes engoli mágoas para não criar discussões?
— Vais deixar-me? — sussurrei, quase sem acreditar.
Ele não respondeu. Pegou no casaco e saiu, deixando-me sozinha com o som da chuva e o cheiro do café arrefecido.
Os dias seguintes foram um nevoeiro denso. Os meus filhos, já crescidos, tentavam consolar-me ao telefone. A minha mãe, velhinha e teimosa, dizia-me: — Aguenta-te, filha. Os homens são todos iguais. — Mas eu não queria aguentar-me. Queria gritar, partir pratos, perguntar-lhe porquê. Porquê agora? Porquê depois de tudo?
A casa tornou-se um lugar estranho. O quarto parecia demasiado grande sem ele. O lado dele da cama ficou frio e arrumado demais. As roupas dele desapareceram dos armários numa manhã em que eu estava no supermercado. Fiquei a olhar para os cabides vazios como quem olha para um abismo.
As vizinhas começaram a cochichar. A dona Amélia, do terceiro andar, encontrou-me nas escadas e disse: — Então o António foi-se embora? — com aquele ar de quem já sabia tudo antes de perguntar.
Senti vergonha. Vergonha de ser deixada, como se fosse culpa minha. Vergonha de não ter visto os sinais. Vergonha de ter acreditado que o amor era para sempre.
Os meses passaram devagar. Aprendi a cozinhar só para mim, a ver novelas sem comentar com ninguém ao lado, a dormir com a luz acesa porque tinha medo do escuro e da solidão. Comecei a ir à missa aos domingos só para ter companhia, para ouvir vozes humanas à minha volta.
Um dia, ao regressar do supermercado, encontrei uma carta na caixa do correio. Era dele.
“Maria do Carmo,
Sei que te magoei muito. Não sei se algum dia me vais perdoar. A verdade é que pensei que precisava de algo novo, mas percebi tarde demais que deixei tudo o que era importante para trás.
Posso passar aí para falar contigo?”
Fiquei horas a olhar para aquelas linhas tortas. O que queria ele agora? Depois de me deixar sozinha com as contas da casa, com as saudades dos filhos que só vinham ao domingo, com os olhares das vizinhas?
Quando finalmente aceitei encontrá-lo, foi num sábado à tarde. Ele entrou na sala como um estranho: mais magro, mais velho, com um olhar cansado.
— A outra não queria cozinhar — disse ele, quase envergonhado.
Olhei-o nos olhos e vi ali um homem derrotado. Não era o António com quem casei; era alguém perdido, à procura de um porto seguro.
— E achas que eu sou o teu porto seguro? — perguntei-lhe, sentindo uma raiva antiga a subir-me à garganta.
Ele baixou a cabeça.
— Não sei viver sem ti, Maria do Carmo.
As palavras ficaram suspensas no ar. Lembrei-me das noites em claro à espera dele, das discussões abafadas para não acordar os miúdos, das vezes em que me senti invisível ao lado dele.
— E eu? Alguma vez pensaste se eu quero viver contigo? — perguntei-lhe.
Ele ficou calado.
Os meus filhos souberam do regresso dele antes de mim. A Ana ligou-me furiosa:
— Mãe, não podes aceitar isso! Ele deixou-te sozinha! — gritava ela ao telefone.
O João foi mais frio:
— Faz o que achares melhor para ti, mãe. Mas lembra-te do que passaste.
A Marta chorou comigo:
— Tenho medo que voltes a sofrer…
Durante dias vivi num limbo: perdoar ou não perdoar? Aceitar de volta quem me magoou ou seguir sozinha?
O António tentou reconquistar-me: trouxe flores baratas do mercado, tentou cozinhar arroz de pato (que ficou intragável), ofereceu-se para arranjar as torneiras da casa. Mas nada disso apagava as noites em claro nem as palavras duras trocadas no passado.
Uma noite sentei-me na varanda com ele e perguntei:
— Porque é que foste embora?
Ele olhou para mim com olhos vermelhos:
— Senti-me velho, Maria do Carmo. Senti que já não era homem suficiente… A outra fazia-me sentir jovem outra vez. Mas percebi que era tudo ilusão.
Chorei baixinho. Não por ele ter ido embora, mas por tudo aquilo que nunca dissemos um ao outro durante anos.
Os meses passaram e fui percebendo que já não era a mesma mulher de antes. Comecei a sair com amigas do bairro: fomos ao cinema ver filmes franceses legendados (que ele sempre detestou), fomos jantar fora sem pressa nem horários para cumprir.
O António continuava lá em casa, mas já não era dono do meu tempo nem dos meus sonhos. Um dia disse-lhe:
— Se queres ficar aqui, tens de perceber que agora sou eu quem manda na minha vida.
Ele acenou em silêncio.
Aos poucos fui recuperando a minha voz: inscrevi-me num curso de pintura na junta de freguesia; comecei a caminhar todas as manhãs pelo jardim; pintei as paredes da sala de amarelo torrado porque sempre odiei aquele bege triste.
A minha mãe dizia-me:
— Estás diferente, filha… até pareces mais nova!
E eu sorria por dentro.
O António tentou adaptar-se à nova Maria do Carmo: ajudava nas lides da casa (mal e porcamente), perguntava-me se podia sair com os amigos (como se precisasse da minha autorização), tentava conversar sobre livros (mas só lia jornais desportivos).
Um dia percebi: já não precisava dele para ser feliz. Podia escolher tê-lo ao meu lado ou não — mas já não era uma questão de sobrevivência ou solidão; era uma escolha consciente.
Os meus filhos começaram a visitar-nos mais vezes. A Ana trouxe os netos para almoçar ao domingo; o João ajudou-me a montar uma estante nova; a Marta fez bolos comigo na cozinha enquanto ríamos das desgraças passadas.
A casa voltou a encher-se de vozes e risos — mas agora eram meus também, não só dele.
Hoje olho para trás e vejo quanto cresci no meio da dor e da solidão. Aprendi que o amor pode apagar-se e voltar — mas nunca é igual ao que era antes. Aprendi a perdoar sem esquecer quem sou.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres como eu vivem caladas atrás das cortinas das suas casas portuguesas? Quantas encontram coragem para recomeçar depois da traição?
E vocês? O que fariam se o amor voltasse depois de vos ter deixado?