Quando o Amor Rompe Barreiras: A História de Pedro e Amélia
— Não podes estar a falar a sério, Pedro! — gritou a minha mãe, com os olhos arregalados e as mãos trémulas sobre a mesa da cozinha. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com a tensão no ar. Eu sentia o coração a bater tão forte que quase abafava o som da chuva a bater nos vidros.
Respirei fundo, tentando encontrar as palavras certas. — Mãe, eu amo-a. Não é uma brincadeira, nem uma fase. Amo mesmo a Amélia.
O silêncio caiu como uma sentença. O meu pai, sentado ao lado dela, desviou o olhar para o chão. A minha irmã, Mariana, mordia o lábio inferior, claramente dividida entre o choque e a curiosidade. Eu sabia que aquele momento mudaria tudo.
Conheci Amélia numa tarde de outono, na biblioteca municipal de Coimbra. Eu estudava para os exames finais do curso de História e ela lia um livro de poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen. O cabelo grisalho apanhado num coque elegante, os óculos de armação fina e um sorriso tímido quando os nossos olhares se cruzaram. Não sei explicar o que senti naquele instante — talvez fosse apenas curiosidade, ou talvez algo mais profundo que só agora consigo nomear.
Começámos a conversar sobre livros, depois sobre música, cinema e até política. Descobri que Amélia era reformada, antiga professora de Literatura Portuguesa. Tinha uma serenidade na voz e uma paixão pela vida que me fascinavam. Os nossos encontros tornaram-se frequentes: cafés ao final da tarde, passeios pelo Jardim Botânico, debates acesos sobre Fernando Pessoa e Saramago.
A primeira vez que lhe toquei na mão foi num desses passeios. O toque foi breve, mas senti um arrepio percorrer-me o corpo inteiro. Ela sorriu, mas logo desviou o olhar.
— Pedro… — disse ela, hesitante — Sabes que isto não faz sentido, não sabes?
— Faz para mim — respondi sem pensar duas vezes.
Os meses passaram e a nossa ligação tornou-se cada vez mais intensa. Mas nunca foi fácil. O medo do julgamento dos outros pairava sempre sobre nós como uma nuvem negra. Quando finalmente decidi contar à minha família, sabia que estava a abrir uma caixa de Pandora.
A minha mãe não conseguia aceitar. — Ela podia ser tua mãe! — repetia vezes sem conta. O meu pai limitava-se a dizer que eu estava a desperdiçar a juventude. Mariana era a única que tentava compreender-me.
— Se te faz feliz… — disse-me ela numa noite em que ficámos a conversar até tarde no meu quarto — Mas tens noção do que vais enfrentar? As pessoas vão falar, Pedro. Vais ser apontado na rua.
Eu sabia disso. Já tinha sentido olhares estranhos quando saía com Amélia. Comentários sussurrados em cafés, risos abafados de desconhecidos. Até alguns amigos começaram a afastar-se.
— Estás maluco? — disse-me o João, meu colega da faculdade — Vais acabar sozinho. Ela vai morrer antes de ti! Não vês isso?
Essas palavras magoavam-me mais do que eu queria admitir. Às vezes acordava a meio da noite com dúvidas a corroer-me por dentro. Será que estava mesmo a fazer a coisa certa? Será que era amor ou apenas uma fuga à monotonia da vida académica?
Mas depois via Amélia sorrir para mim, ouvia as suas histórias sobre os anos 70 em Lisboa, sentia o calor da sua mão na minha e tudo fazia sentido outra vez.
O maior teste veio quando decidi apresentar Amélia à família num jantar em nossa casa. O ambiente estava carregado desde o início. A minha mãe esforçava-se por ser cordial, mas não conseguia esconder o desconforto. O meu pai quase não abriu a boca durante toda a refeição.
No final do jantar, Amélia pediu licença e foi à casa de banho. Assim que ela saiu da sala, a minha mãe explodiu:
— Isto é uma vergonha! O que é que os vizinhos vão pensar? E os teus avós? Já pensaste neles?
Eu levantei-me da mesa, sentindo as lágrimas a quererem saltar dos olhos.
— Não me interessa o que os outros pensam! Pela primeira vez na vida sinto-me amado de verdade!
Amélia voltou à sala nesse momento e percebeu imediatamente o ambiente pesado. Aproximou-se de mim e pousou uma mão no meu ombro.
— Se quiseres acabar com isto agora… eu compreendo — disse ela baixinho.
Olhei-a nos olhos e vi ali toda a dor do mundo misturada com esperança. Abracei-a com força.
— Não te vou deixar — sussurrei-lhe ao ouvido.
Depois desse jantar, as coisas ficaram ainda mais difíceis em casa. A minha mãe deixou de me falar durante dias. O meu pai tentava manter-se neutro, mas percebia-se que estava desiludido comigo.
Na faculdade também não era melhor. Os rumores espalharam-se rapidamente. Alguns professores olhavam-me com desconfiança; outros faziam piadas veladas sobre “experiências” fora do comum.
Só Amélia me dava força para continuar. Juntos criámos pequenos refúgios: um banco escondido no Parque Verde do Mondego onde ninguém nos conhecia; um restaurante indiano onde éramos apenas mais dois clientes; tardes inteiras passadas em silêncio na sua casa, ouvindo discos antigos de Zeca Afonso.
Mas nem tudo era perfeito entre nós. Havia momentos em que sentia o peso da diferença de idades. Amélia cansava-se mais depressa; às vezes falava dos netos dos amigos ou das dores nas articulações. Eu queria viajar pelo mundo, ela preferia ficar em casa a ler ou ver filmes antigos.
Uma noite, depois de fazermos amor, Amélia ficou calada durante muito tempo. Finalmente falou:
— Tenho medo de te prender, Pedro. Tenho medo de te roubar anos preciosos da tua vida.
Abracei-a com força.
— Não me roubas nada. Dás-me tudo.
Mas as dúvidas dela começaram a crescer dentro de mim também. E se ela tivesse razão? E se um dia acordasse e percebesse que tinha perdido oportunidades por causa deste amor?
O tempo passou e as pressões aumentaram. Um dia recebi uma mensagem da minha mãe: “O teu avô está muito doente. Vem cá.” Fui imediatamente para casa dos meus pais. O meu avô estava no quarto, pálido e frágil.
— Senta-te aqui ao pé do avô — pediu ele com voz fraca.
Sentei-me e ele segurou-me na mão.
— Ouvi dizer que tens uma namorada especial…
Fiquei sem saber o que dizer.
— Sabes… quando era novo também amei alguém contra tudo e contra todos — contou ele com um sorriso triste — Mas deixei fugir por medo do que os outros iam pensar. Nunca te arrependas de amar à tua maneira, Pedro.
Essas palavras ficaram gravadas em mim como fogo.
No funeral do meu avô, Amélia apareceu discretamente ao fundo da igreja. Vi-a entre as pessoas vestidas de preto e senti uma onda de gratidão por tê-la na minha vida.
Depois desse dia decidi deixar de me esconder. Comecei a levar Amélia aos jantares com amigos (os poucos que restaram), apresentei-a aos colegas mais próximos da faculdade e levei-a até à praia da Figueira da Foz para ver o pôr-do-sol como sempre sonhara.
A minha mãe nunca aceitou totalmente a nossa relação, mas com o tempo aprendeu a respeitar as minhas escolhas. Mariana tornou-se confidente da Amélia; juntas partilhavam receitas e histórias de família.
Hoje olho para trás e vejo tudo o que perdi: amigos, respeito social, até parte da relação com os meus pais ficou marcada para sempre. Mas também vejo tudo o que ganhei: coragem para ser quem sou, um amor verdadeiro e memórias que ninguém me pode tirar.
Às vezes pergunto-me se fiz bem em desafiar todas as regras por este amor improvável. Mas depois lembro-me das palavras do meu avô: “Nunca te arrependas de amar à tua maneira.” E vocês? Até onde iriam por amor?