Quando o amor pesa: A história de uma avó e o seu neto em Lisboa
— Avó, quando é que vais receber a pensão este mês?
A pergunta do Tiago ecoou pela cozinha fria, misturando-se com o cheiro do café acabado de fazer. Senti um aperto no peito, como se cada palavra dele fosse um prego a cravar-se no meu coração. Olhei para ele — tão crescido, já com 17 anos, mas com um olhar que não reconhecia. Não era o menino que eu embalei tantas noites, nem o rapazinho que chorava quando caía na rua de Alfama. Era outro. Um estranho.
— Porquê, Tiago? Precisas de alguma coisa? — tentei sorrir, mas a voz saiu-me trémula.
Ele encolheu os ombros, desviando o olhar para o telemóvel. — Nada de especial. Só queria saber.
Fiquei a olhar para ele, tentando decifrar o que se passava naquela cabeça. Desde que a minha filha, a Ana, foi para Londres trabalhar como empregada de limpeza, há quase cinco anos, que fiquei com o Tiago. No início, pensei que seria por pouco tempo. Mas os meses passaram, as chamadas da Ana tornaram-se cada vez mais raras e curtas. O Tiago foi crescendo ao meu lado, mas sempre com um pé fora de casa.
Lembro-me da primeira vez que ele me pediu dinheiro para sair com os amigos. Dei-lhe vinte euros, pensando que era normal. Mas depois vieram os pedidos para ténis novos, para um telemóvel melhor, para pagar festas e viagens da escola. Eu ia dizendo que sim, cortando aqui e ali na minha própria vida: menos carne ao jantar, menos idas ao cabeleireiro, menos comprimidos para as dores nas costas.
Uma noite, não consegui dormir. Fiquei a olhar para o teto do meu quarto, ouvindo o som dos carros na rua e pensando: será que estou a ser boa avó? Ou estou só a ser usada?
No dia seguinte, tentei falar com ele.
— Tiago, precisamos de conversar.
Ele bufou, sem tirar os olhos do ecrã. — O que foi agora?
— Sinto que só me procuras quando precisas de dinheiro. Não falamos como antes. Não partilhamos nada.
Ele levantou-se abruptamente. — Se não queres ajudar-me, diz logo! Não preciso de ouvir sermões!
Fiquei ali sentada, sozinha na sala, com as lágrimas a correrem-me pelo rosto. Lembrei-me do tempo em que a Ana era pequena e me dizia: “Mãe, nunca me deixes.” Agora era eu quem sentia medo de ser deixada.
Os dias seguintes foram um silêncio pesado entre nós. Ele saía cedo e voltava tarde. Eu fingia não reparar nas roupas novas ou nos cheiros estranhos quando entrava em casa. Uma noite, ouvi-o ao telefone no corredor:
— Quando a avó receber a pensão, eu fico cá mais uns dias. Depois logo se vê.
O chão fugiu-me dos pés. Senti-me usada, descartável. Como se só servisse enquanto houvesse dinheiro para dar.
Na manhã seguinte, decidi ligar à Ana. Esperei ouvir a sua voz cansada do outro lado da linha.
— Mãe? Está tudo bem?
— Não está nada bem, Ana. Sinto-me sozinha aqui. O Tiago… não sei o que fazer com ele.
Ela suspirou fundo. — Mãe, eu sei que é difícil. Mas ele é adolescente…
— Não é só isso! Ele só me procura por causa do dinheiro! E tu? Quando é que vens buscar o teu filho?
Do outro lado ouvi silêncio. Depois uma voz baixa:
— Não posso agora… Preciso deste trabalho. Sabes como está Portugal…
Desliguei antes de começar a chorar outra vez.
Os dias passaram lentos. Comecei a sair mais de casa — ia ao mercado falar com a Dona Rosa, sentava-me no banco do jardim a ver as crianças brincarem. Uma tarde encontrei o Sr. Manuel, viúvo como eu.
— Então Maria do Carmo, está tudo bem?
— Vai-se andando… — respondi.
Ele olhou-me nos olhos e disse: — Sabe, às vezes damos tanto aos outros que esquecemos de nós próprios.
Aquelas palavras ficaram comigo durante dias.
Numa noite chuvosa, o Tiago chegou tarde e percebi que tinha chorado.
— O que se passa? — perguntei baixinho.
Ele hesitou antes de responder:
— Os meus amigos… disseram que eu só estou contigo por causa do dinheiro. Que sou um aproveitador.
Sentei-me ao lado dele e abracei-o como fazia quando era pequeno.
— Tiago… eu amo-te. Mas dói sentir que só me procuras por isso. Eu quero ser tua família, não só tua carteira.
Ele chorou no meu ombro durante muito tempo.
Nos dias seguintes começámos a falar mais. Ele contou-me das dificuldades na escola, das saudades da mãe, dos medos de crescer sem rumo. Eu contei-lhe das minhas dores e solidão.
A Ana ligou pouco depois:
— Mãe… vou tentar voltar no verão. O Tiago precisa de mim… e tu também.
Não sei como será o futuro. Talvez continue sozinha nesta casa grande demais para mim. Talvez o Tiago encontre o seu caminho e se lembre de mim não só como fonte de dinheiro, mas como porto seguro.
Às vezes pergunto-me: quantas avós há em Portugal como eu? Quantos netos crescem à sombra da ausência dos pais? E será que algum dia aprendemos todos a amar sem esperar nada em troca?