Quando o Amor Não Basta: Entre o Passado e o Presente de uma Família Reconstituída
— Não és meu pai! — gritou o Tiago, com os olhos cheios de lágrimas e raiva, enquanto atirava a mochila para o chão do corredor. O som ecoou pela casa, cortando o silêncio pesado que se instalara desde que eu tinha chegado do trabalho. Fiquei ali parado, com as chaves ainda na mão, sentindo o peso daquelas palavras como se fossem pedras atiradas ao peito.
A Patrícia apareceu logo atrás dele, cansada, os cabelos presos num coque desalinhado. — Ricardo, por favor… — murmurou ela, mas eu já sabia que não havia nada a dizer. O Tiago tinha onze anos e nunca me aceitara verdadeiramente. A irmã mais nova, a Sofia, era diferente: mais reservada, mas também distante. Desde o início, percebi que não seria fácil conquistar o espaço deles.
Conheci a Patrícia numa noite de chuva em Lisboa. Eu estava num café pequeno em Campo de Ourique, a tentar aquecer-me com um galão e a ler um livro qualquer para passar o tempo. Ela entrou apressada, com um guarda-chuva partido e um sorriso tímido. Sentou-se ao meu lado porque não havia mais lugares. Começámos a conversar sobre trivialidades — o trânsito, o tempo, a crise que parecia nunca acabar — e, sem percebermos, ficámos ali até fecharem as portas.
Ela contou-me logo que era divorciada e mãe de dois filhos. Não hesitou nem tentou dourar a pílula. Senti uma honestidade nela que me prendeu. Eu próprio vinha de uma família complicada: pais separados, irmãos afastados. Talvez por isso tenha sentido que podia compreender as dores dela.
Os primeiros meses foram mágicos. Passeávamos pelos miradouros de Lisboa, ríamos das pequenas desgraças do quotidiano português — os transportes atrasados, as contas da luz sempre a subir — e sonhávamos com um futuro juntos. Mas quando conheci os filhos dela, percebi que estava a entrar num território minado.
O ex-marido da Patrícia, o João, era uma sombra constante. Aparecia sempre nos momentos menos oportunos: festas de aniversário, reuniões da escola, até nos domingos em que tentávamos fazer um almoço em família. Nunca foi agressivo ou mal-educado; pelo contrário, era cordial demais. Mas havia sempre aquele olhar de quem avalia e julga.
— Achas mesmo que isto vai resultar? — perguntou-me a minha mãe um dia, enquanto tomávamos café na varanda do apartamento dela em Almada. — Uma mulher já feita, com filhos… Ricardo, tu mereces alguém só para ti.
Senti-me magoado com aquelas palavras. Mas não podia negar que ecoavam dentro de mim nos momentos mais difíceis. Os meus amigos também não ajudavam:
— Vais criar filhos de outro? — dizia o Pedro, meio a brincar, meio a sério. — Isso é trabalho ingrato.
Mas eu amava a Patrícia. E acreditava que o amor podia vencer tudo.
O tempo foi passando e as dificuldades acumulavam-se. O Tiago começou a desafiar-me abertamente: não cumpria regras, respondia-me mal e fazia questão de me ignorar sempre que podia. A Sofia fechou-se ainda mais no seu mundo de desenhos e livros. A Patrícia tentava ser mediadora, mas acabava sempre dividida entre mim e os filhos.
As noites tornaram-se longas e silenciosas. Muitas vezes ficava acordado na sala, a olhar para as luzes da cidade pela janela e a perguntar-me se estava a fazer a coisa certa.
Uma noite, depois de mais uma discussão por causa dos trabalhos de casa do Tiago — ele recusava-se a aceitar a minha ajuda — sentei-me ao lado da Patrícia na cama.
— Não sei se consigo mais — confessei-lhe em voz baixa. — Sinto-me um estranho nesta casa.
Ela olhou para mim com lágrimas nos olhos.
— Eu também não sei o que fazer… Eles são tudo para mim, Ricardo. Mas tu também és.
Ficámos abraçados em silêncio, cada um perdido nos seus próprios medos.
As coisas pioraram quando o João começou a namorar uma mulher mais nova. O Tiago ficou revoltado; dizia que ninguém queria saber dele. A Sofia começou a ter pesadelos à noite. A Patrícia andava exausta e eu sentia-me cada vez mais impotente.
Um sábado à tarde, estávamos todos na sala quando o Tiago explodiu:
— Porque é que não vais embora? Ninguém te quer aqui!
A Patrícia tentou intervir, mas ele já tinha saído porta fora. Fui atrás dele até ao jardim do prédio.
— Tiago! Espera!
Ele virou-se para mim com os olhos vermelhos:
— Tu não és meu pai! Nunca vais ser!
Senti uma dor profunda. Quis abraçá-lo, dizer-lhe que só queria ajudar, mas ele afastou-se.
Nessa noite, sentei-me sozinho na cozinha com um copo de vinho barato e pensei em tudo o que tinha perdido e ganho desde que conhecera a Patrícia. Lembrei-me das palavras da minha mãe e dos meus amigos. Lembrei-me das noites felizes com ela antes de tudo se complicar.
No dia seguinte, tentei falar com a Sofia enquanto ela desenhava na mesa da sala.
— Posso ver o teu desenho?
Ela encolheu os ombros e empurrou-o na minha direção. Era uma família: mãe, pai (o João), ela e o Tiago. Eu não estava lá.
— E eu? — perguntei num tom leve.
Ela olhou para mim sem sorrir:
— Tu não fazes parte desta família…
Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos mas contive-me.
Os meses seguintes foram um arrastar de dias cinzentos. A Patrícia tentava manter tudo unido mas estava cada vez mais desgastada. Eu sentia-me um intruso na vida deles.
Até que numa noite fria de dezembro, depois de mais uma discussão por causa do jantar (o Tiago recusou-se a comer porque fui eu que cozinhei), sentei-me com a Patrícia na sala.
— Não posso continuar assim — disse-lhe finalmente. — Amo-te muito… mas isto está a destruir-nos aos dois.
Ela chorou baixinho durante muito tempo. No fim, abraçámo-nos como dois náufragos antes de nos deixarmos ir à deriva.
Saí de casa nessa noite com uma mala pequena e o coração despedaçado.
Hoje vivo sozinho num T1 em Benfica. Vejo a Patrícia de vez em quando; trocamos mensagens cordiais mas distantes. O Tiago e a Sofia cresceram sem mim por perto. Às vezes pergunto-me se devia ter lutado mais ou se fiz bem em sair antes que tudo se tornasse ainda mais doloroso.
O amor pode vencer tudo? Ou há batalhas em que simplesmente não temos armas suficientes? E vocês… já sentiram que amar alguém não chega para serem felizes juntos?