Quando o Amor Não Basta: Entre o Passado e o Presente de uma Família Recomposta
— Não és o meu pai! — gritou o Tiago, com os olhos marejados de lágrimas e a voz a tremer de raiva. O prato voou da mesa e estilhaçou-se no chão da cozinha, espalhando arroz e frango pelo azulejo frio. Fiquei parado, mãos trémulas, sem saber se devia responder ou simplesmente sair dali. A Patrícia olhava para mim, exausta, como se pedisse desculpa por mais uma noite arruinada.
Nunca pensei que amar alguém pudesse doer tanto. Quando conheci a Patrícia, há três anos, ela era uma força da natureza: riso fácil, olhos castanhos cheios de histórias e uma coragem que me desarmou logo no primeiro encontro. Trabalhávamos na mesma escola — eu professor de História, ela de Inglês — e os nossos cafés ao final da tarde rapidamente se transformaram em jantares longos, conversas sobre livros, sonhos e medos. Só mais tarde me contou sobre o divórcio difícil e os dois filhos, Tiago e Matilde.
— Eles ainda estão muito magoados com o pai — disse-me numa dessas noites, enquanto enrolava o cabelo nos dedos. — Não sei se algum dia vão aceitar alguém ao meu lado.
Eu, ingénuo, acreditei que o amor tudo podia. Que bastava querer muito para ser aceite. Que a minha vontade de ser família seria suficiente para curar as feridas deles. Disse-lhe isso mesmo:
— Eu não quero substituir ninguém. Só quero estar aqui para vocês.
O início foi feito de pequenos gestos: levar a Matilde à ginástica, ajudar o Tiago com os trabalhos de casa, preparar panquecas ao domingo. Mas havia sempre um muro invisível entre nós. O Tiago olhava-me como se eu fosse um intruso; a Matilde era mais doce, mas fechava-se em silêncio sempre que eu tentava aproximar-me demasiado.
Os meus pais não ajudaram. Lembro-me do jantar em casa deles, quando anunciei que ia viver com a Patrícia.
— Achas mesmo boa ideia? — perguntou o meu pai, olhando-me por cima dos óculos. — Uma mulher divorciada, com filhos? Não é fácil…
A minha mãe foi mais direta:
— Vais acabar por te magoar. Eles nunca vão gostar de ti como gostariam do pai deles.
Saí desse jantar com um nó no estômago, mas ainda assim determinado a provar-lhes que estavam errados. Queria ser diferente dos homens que fogem à primeira dificuldade. Queria ser herói.
Mas a vida real não tem heróis. Tem dias em que cheguei a casa e encontrei a Matilde a chorar porque o pai não apareceu para a buscar; noites em que ouvi a Patrícia a discutir ao telefone com o ex-marido por causa das pensões em atraso; manhãs em que o Tiago me ignorava completamente à mesa do pequeno-almoço.
Houve momentos bons, claro. Como aquele fim de semana em Sintra, quando subimos todos ao Castelo dos Mouros e tirámos uma fotografia juntos — eu com a Matilde às cavalitas e o Tiago finalmente a sorrir ao meu lado. Guardei essa foto na carteira durante meses, como prova de que era possível sermos felizes.
Mas esses momentos eram cada vez mais raros. O Tiago entrou na adolescência com uma raiva surda que não sabia explicar. Começou a faltar às aulas, a responder torto à mãe e a fechar-se no quarto durante horas. Uma noite, depois de mais uma discussão acesa, ouvi-o dizer à Patrícia:
— Se não fosse por ele, o pai voltava para casa!
Senti-me esmagado por aquela frase. Era eu o obstáculo à felicidade deles? Fui falar com a Patrícia na varanda, enquanto ela fumava um cigarro atrás do outro.
— Não é culpa tua — disse ela, mas os olhos dela diziam outra coisa. — Só… é tudo tão difícil.
Comecei a afastar-me sem dar por isso. Passei a chegar mais tarde do trabalho, aceitei mais reuniões e projetos para evitar estar em casa. Sentia-me um estranho na minha própria vida. Os meus amigos começaram a notar:
— Estás diferente, Ricardo. Tens de pensar em ti também.
Mas como pensar em mim quando sentia que estava sempre a falhar aos outros?
O ponto de rutura chegou numa noite chuvosa de novembro. O Tiago tinha desaparecido depois das aulas; não atendia o telemóvel e ninguém sabia dele. A Patrícia entrou em pânico, ligou à polícia, aos amigos dele, ao ex-marido. Eu percorri as ruas do bairro à procura dele, sentindo-me impotente e culpado.
Encontrámo-lo perto do parque infantil onde costumava brincar em pequeno, encolhido num banco molhado, olhos vermelhos de tanto chorar.
— Quero ir para casa do pai — disse-me ele, sem me olhar nos olhos.
Levei-o para casa em silêncio. Nessa noite dormi no sofá; ouvi a Patrícia chorar baixinho no quarto dela.
Depois disso nada voltou a ser igual. O Tiago foi viver com o pai; a Matilde ficou connosco mas tornou-se ainda mais distante. Eu e a Patrícia começámos a discutir por tudo e por nada: contas por pagar, tarefas domésticas esquecidas, silêncios cada vez mais longos à mesa.
Um dia sentei-me com ela na sala e perguntei-lhe:
— Achas que ainda faz sentido continuarmos?
Ela olhou para mim com tristeza e respondeu:
— Eu queria muito acreditar que sim… Mas já não sei.
Decidimos separar-nos pouco tempo depois. Arrumei as minhas coisas num fim de semana cinzento; despedi-me da Matilde com um abraço tímido e saí sem olhar para trás.
Hoje vivo sozinho num pequeno apartamento perto do rio Tejo. Voltei a dar aulas com paixão; reencontrei alguns amigos antigos; tento reconstruir-me aos poucos. Às vezes cruzo-me com a Patrícia no supermercado ou vejo fotos dos miúdos nas redes sociais. Sinto saudades deles — das rotinas partilhadas, dos domingos preguiçosos no sofá, até das discussões acesas à volta da mesa.
Pergunto-me muitas vezes: será que podia ter feito algo diferente? Será que o amor chega mesmo para vencer todas as barreiras? Ou há dores antigas que nem todo o amor do mundo consegue curar?
E vocês? Acham que vale sempre a pena lutar por uma família recomposta? Ou há alturas em que é preciso saber desistir para não nos perdermos também?