Quando o Amor de Mãe se Torna Armadilha: A História de Maria e o Preço da Entrega

— Mãe, não podes simplesmente aparecer assim, sem avisar! — A voz da Inês ecoou pelo corredor, carregada de impaciência. Eu ainda tinha a chave da casa do meu filho, Pedro, mas desde que ele casara com a Inês, sentia-me cada vez mais como uma intrusa na vida deles.

Apertei o casaco contra o peito, tentando abafar o frio que vinha tanto de fora como de dentro. — Desculpa, Inês. Só queria trazer-te o arroz doce que fiz ontem. Sei que gostas…

Ela suspirou, desviando o olhar. — Obrigada, mas agora não é boa altura. O Pedro está cansado do trabalho e eu tenho de preparar umas coisas para amanhã.

Fiquei ali parada, sentindo-me pequena na entrada da casa que ajudei a pagar. O Pedro sempre foi o meu menino, o meu orgulho. Depois da morte do pai dele, fui mãe e pai, trabalhei noites inteiras na fábrica de conservas em Matosinhos para lhe dar tudo. E agora, aos 62 anos, quando finalmente pensei que podia viver um pouco para mim, ele parecia cada vez mais distante.

Naquela noite, voltei para o meu apartamento vazio. Sentei-me à mesa da cozinha, olhando para as fotografias antigas: Pedro no batizado, Pedro no primeiro dia de escola, Pedro a segurar o diploma da universidade. Sempre fui eu a empurrá-lo para a frente. E agora? Agora era eu quem precisava de um empurrão.

No dia seguinte, Pedro ligou-me. — Mãe, precisamos falar. Podes vir cá a casa?

O coração saltou-me no peito. Talvez quisessem pedir desculpa pela frieza de ontem. Talvez…

Quando cheguei, estavam os dois sentados no sofá, sérios. — Mãe — começou Pedro —, eu e a Inês andamos a pensar… Achamos que talvez fosse melhor tu ires viver para um lar.

Senti o chão fugir-me dos pés. — Um lar? Mas porquê? Eu estou bem sozinha!

— Não é isso… — disse Inês, com aquele tom doce que usava quando queria parecer razoável — É só que… tu estás muito sozinha. E nós precisamos de espaço para começar a nossa família.

A palavra “família” ficou a ecoar-me nos ouvidos como uma sentença. Eu era família deles! Não era?

— Eu ajudei-vos em tudo! — gritei, incapaz de conter as lágrimas — Dei-vos dinheiro para esta casa! Fiquei com a Leonor quando vocês quiseram ir de férias! E agora querem mandar-me para um lar?

Pedro baixou os olhos. — Mãe, não é isso… Só queremos o melhor para ti.

Saí dali sem olhar para trás. Durante dias não consegui dormir. As palavras deles martelavam-me na cabeça. Fui falar com a minha irmã Rosa.

— Maria, não te deixes pisar! Eles só pensam neles próprios! — disse ela, indignada.

Mas eu conhecia o Pedro. Ele não era mau rapaz… Ou era? Comecei a duvidar de tudo.

As semanas passaram. O telefone não tocava. Nem um convite para jantar, nem uma visita da Leonor. Senti-me invisível.

Um dia, bati à porta deles sem avisar. Precisava de ver a minha neta. A Inês abriu a porta com um sorriso forçado.

— Olá Maria… Vieste ver a Leonor? Ela está na escola.

— Posso esperar?

Ela hesitou, mas deixou-me entrar. Sentei-me na sala e reparei que havia brinquedos novos por todo o lado. Uma fotografia deles os três sorridentes na praia. Senti uma pontada no peito.

Quando Leonor chegou da escola, correu para mim.

— Avó! Que saudades!

Abracei-a com força. — Também tinha saudades tuas, meu amor.

Inês ficou a olhar para nós, desconfortável.

— Maria — disse ela baixinho — Sei que isto é difícil para ti… Mas tens de perceber que as coisas mudam.

Olhei-a nos olhos. — Mudam? Ou deixam de precisar de mim?

Ela não respondeu.

Naquela noite escrevi uma carta ao Pedro:

“Filho,
Sei que cresceste e tens a tua vida. Mas custa-me sentir que já não faço parte dela. Sempre te dei tudo o que pude, mesmo quando me faltava a mim própria. Não quero ser um peso para ti nem para a Inês. Mas também não quero ser descartada como um móvel velho.
Amo-te sempre,
Mãe”

Esperei dias por resposta. Nada.

Comecei a sair mais de casa. Inscrevi-me num grupo de caminhadas no parque da cidade. Conheci outras mulheres da minha idade com histórias parecidas: filhos ingratos, noras frias, netos afastados pela distância ou pelo orgulho dos pais.

Uma tarde, depois de uma caminhada longa, sentei-me num banco ao sol com a Dona Amélia.

— Sabe, Maria? Às vezes temos de aprender a viver só connosco. Os filhos crescem e esquecem-se das raízes.

Chorei ali mesmo ao lado dela. Pela primeira vez em meses senti-me compreendida.

No Natal desse ano decidi não ir à casa do Pedro. Fiquei sozinha em casa com um prato de bacalhau e as luzes da árvore acesas só para mim.

À meia-noite o telefone tocou: era Leonor.

— Avó! Porque não vieste?

— Porque às vezes precisamos de lembrar aos outros que também temos sentimentos, querida.

Ela ficou calada do outro lado.

Dias depois recebi uma mensagem do Pedro: “Desculpa mãe. Podemos falar?”

Encontrámo-nos num café perto da minha casa. Ele parecia mais velho, cansado.

— Mãe… Sinto muito pelo que te dissemos. Eu estava sob pressão… A Inês quer muito ter outro filho e acha que precisamos de espaço… Mas eu sinto a tua falta.

Olhei-o nos olhos e vi ali o menino que criei sozinho.

— Filho… Eu só queria sentir que ainda sou importante para ti.

Ele pegou na minha mão.

— És sempre importante para mim, mãe. Só não sei como equilibrar tudo…

Saí daquele café com o coração mais leve mas também mais realista: talvez nunca voltasse a ser como antes. Talvez tivesse mesmo de aprender a viver para mim própria.

Hoje olho para trás e pergunto-me: será que fiz bem em dar tudo pelo meu filho? Ou devia ter guardado um pouco mais para mim? Quantas mães portuguesas vivem esta solidão disfarçada de amor? E vocês… também já sentiram isto?