Quando Gritei: “Ou Eu, ou a Tua Mãe” — O Dia em que o Meu Casamento Estremeceu

— Não aguento mais, Rui! Ou resolves isto com a tua mãe, ou eu vou-me embora! — gritei, com a voz embargada e as mãos a tremer. O eco das minhas palavras ficou suspenso na sala, entre as fotografias de família e o cheiro do jantar que Dona Lurdes preparava na cozinha.

Rui olhou-me como se eu tivesse perdido o juízo. — Mas, Ana… Ela é minha mãe. Não posso simplesmente… — hesitou, como sempre fazia quando o assunto era Dona Lurdes. Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. Quantas vezes já tínhamos tido esta conversa? Quantas vezes eu tinha engolido em seco, fingindo que não me importava de ser a segunda opção?

Quando casei com o Rui, há sete anos, sonhava com uma vida a dois, cheia de cumplicidade e respeito. Mas desde o início, Dona Lurdes fez questão de marcar território. “Aqui em casa faz-se assim”, dizia ela, mesmo depois de nos mudarmos para o nosso apartamento em Benfica. Rui nunca lhe dizia que não. Se ela queria vir passar o fim de semana connosco, vinha. Se queria decidir o que íamos comer, decidia. Até as cortinas da sala foram escolhidas por ela — “O Rui gosta destas cores”, justificava.

No início tentei ser compreensiva. Afinal, Rui era filho único e Dona Lurdes tinha ficado viúva cedo. Mas à medida que os anos passavam, comecei a sentir-me uma estranha na minha própria casa. Os meus amigos notavam: “Ana, tu nunca vens sair connosco ao sábado!” — Como podia? Dona Lurdes fazia questão de jantar cá todos os sábados. E Rui? “Coitada da minha mãe, está sozinha…” — repetia ele.

A gota de água foi quando engravidei do nosso primeiro filho. Achei que finalmente as coisas iam mudar, que Rui ia perceber que agora éramos uma família. Mas Dona Lurdes tornou-se ainda mais presente. “Eu é que sei como se faz”, dizia ela, enquanto me tirava o bebé dos braços para lhe dar banho à sua maneira. Senti-me inútil, desautorizada. Uma noite, depois de ela sair, desatei a chorar no ombro do Rui.

— Amor, ela só quer ajudar… — murmurou ele, sem convicção.

— E tu? Quando é que vais querer ajudar-me a mim? — perguntei-lhe, mas ele desviou o olhar para o telemóvel.

As discussões tornaram-se rotina. Pequenas coisas explodiam em grandes discussões: o jantar que Dona Lurdes criticava, as roupas do bebé que ela achava inadequadas, até a forma como eu arrumava a despensa. Rui nunca me defendia. Sentia-me sozinha, traída por quem devia ser meu parceiro.

Uma tarde, cheguei a casa mais cedo do trabalho e encontrei Dona Lurdes a remexer nas minhas gavetas.

— O que está a fazer no meu quarto? — perguntei, tentando controlar a voz.

Ela olhou-me com aquele ar superior: — Só estava a ver se tinhas roupa para passar a ferro. Não leves a mal, Ana. Aqui em casa sempre se fez assim.

Senti um nó na garganta. Liguei ao Rui imediatamente:

— Ou ela sai daqui hoje, ou eu vou embora!

Ele ficou em silêncio do outro lado da linha. Quando chegou a casa, tentou acalmar-me:

— Ana, não podes pôr-me nesta posição…

— Não sou eu que te ponho nesta posição! És tu que nunca escolheste estar do meu lado!

Naquela noite dormi no sofá. O bebé chorou várias vezes e fui eu que tratei dele sozinha. Rui ficou no quarto com os fones nos ouvidos.

No dia seguinte, Dona Lurdes apareceu cedo como sempre. Olhou para mim e disse:

— O Rui contou-me tudo. Não penses que vais separar um filho da mãe!

Senti um impulso de responder à letra, mas limitei-me a pegar no bebé e sair para o parque. Sentei-me num banco e chorei baixinho enquanto embalava o meu filho.

Comecei a pensar em tudo o que tinha abdicado: os jantares com amigos, os fins de semana fora, até as férias no Algarve porque Dona Lurdes não queria ficar sozinha em Lisboa. E Rui? Sempre entre nós duas, mas nunca verdadeiramente do meu lado.

Naquela noite esperei por ele acordada.

— Rui, isto não pode continuar assim. Ou tu pões limites à tua mãe ou eu vou-me embora com o nosso filho.

Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez em muito tempo.

— Achas mesmo que é preciso chegar a esse ponto?

— Já chegámos há muito tempo.

Houve um silêncio pesado entre nós. Pela primeira vez vi medo nos olhos dele — medo de perder aquilo que sempre tomou por garantido.

No dia seguinte Dona Lurdes não apareceu cá em casa. Rui passou o dia calado, quase ausente. À noite sentou-se ao meu lado:

— Falei com a minha mãe. Disse-lhe que precisamos de espaço.

Senti um alívio misturado com culpa. Sabia que para ele era difícil magoar a mãe, mas também sabia que não podia continuar a viver assim.

Durante semanas as coisas estiveram tensas. Dona Lurdes ligava todos os dias a chorar ao telefone: “O teu pai nunca me faria isto!”; “Aquela mulher está-te a afastar da família!”; “O teu filho vai crescer sem avó!”. Rui tentava manter-se firme mas eu via-o cada vez mais distante.

Uma noite encontrei-o na varanda às escuras.

— Valeu a pena? — perguntou ele.

Sentei-me ao lado dele e ficámos em silêncio durante muito tempo.

A verdade é que nada voltou a ser como antes. A relação com Dona Lurdes ficou fria e distante; Rui tornou-se mais fechado; eu própria perdi parte da leveza com que via o casamento.

Mas pela primeira vez senti que tinha lutado por mim — pela minha dignidade e pelo direito de ser respeitada na minha própria casa.

Agora olho para trás e pergunto-me: será possível amar alguém sem perdermos quem somos? Quantas mulheres portuguesas vivem presas entre o amor pelo marido e o peso das famílias? E vocês? O que fariam no meu lugar?