Quando Famílias se Misturam: Uma Decisão que Nos Despedaçou
— Não aguento mais, mãe! A Beatriz faz de propósito para me irritar! — gritou o Tiago, atirando a mochila para o chão da sala. O som ecoou pela casa, misturando-se com o choro contido que ele tentava esconder. Eu estava a preparar o jantar, mas larguei tudo e corri para ele. O cheiro do refogado ficou no ar, esquecido.
— Tiago, por favor, tenta perceber… — comecei, mas ele virou-me as costas, subindo as escadas a correr. O Ricardo entrou nesse instante, cansado do trabalho, e olhou para mim com aquele olhar de quem já não sabe o que fazer.
— Outra vez? — perguntou, baixinho, como se não quisesse acreditar.
A verdade é que já não era novidade. Desde que eu e o Ricardo juntámos as nossas vidas — eu com o Tiago, ele com a Beatriz — que parecia impossível encontrar paz naquela casa. Os dois miúdos nunca se entenderam. O Tiago sentia-se invadido, como se a Beatriz lhe roubasse o espaço e o pouco tempo que tinha comigo. A Beatriz, por sua vez, achava que eu era demasiado protetora com ele e que o pai só tinha olhos para mim.
As discussões eram diárias. Pequenas coisas tornavam-se tempestades: quem ficava com o comando da televisão, quem sentava à janela no carro, quem comia o último iogurte. Eu tentava mediar, mas sentia-me a perder forças. O Ricardo era mais prático: “Eles têm de aprender a dar-se”, dizia sempre. Mas não aprendiam.
Numa noite especialmente difícil, depois de um jantar em silêncio e pratos partidos na cozinha, sentei-me no sofá com o Ricardo. O Tiago trancou-se no quarto e a Beatriz foi para casa da mãe.
— Isto não pode continuar assim, Marta — disse ele, com voz grave. — Estamos todos a sofrer.
— Achas que não sei? Mas o que é que sugeres? Separarmo-nos? — perguntei, já sem filtro.
Ele abanou a cabeça.
— Não… Mas talvez devêssemos pensar em dar algum espaço ao Tiago. Os teus pais têm tanto jeito para ele… E lá em Trás-os-Montes podia acalmar-se, longe desta confusão.
Fiquei sem palavras. Mandar o meu filho embora? Era isso que ele estava a sugerir? Senti uma dor aguda no peito.
— Queres que eu escolha entre ti e o meu filho? — sussurrei.
— Não é isso! Só acho que precisamos de respirar. Todos nós. E os teus pais adoram o Tiago…
Passei a noite em claro. Lembrei-me de quando era só eu e o Tiago, dos nossos domingos no parque, das noites em que ele adormecia no meu colo. Agora parecia-me tão distante. Será que estava mesmo a falhar como mãe?
No dia seguinte, liguei à minha mãe. Ela percebeu logo pela minha voz.
— Marta, filha… O Tiago está bem?
Expliquei-lhe tudo entre soluços. Ela ouviu-me em silêncio e depois disse:
— Se achas que é melhor para ele vir para cá uns tempos, nós cuidamos dele como sempre fizemos. Mas tens de ter a certeza de que é isso que queres.
O Tiago ouviu parte da conversa e entrou na cozinha de rompante.
— Vais mandar-me embora? — perguntou, olhos vermelhos.
Abracei-o com força.
— Nunca te mandaria embora, filho. Mas talvez uns dias com os avós te façam bem… Só até as coisas acalmarem aqui.
Ele não respondeu. No dia seguinte fez as malas em silêncio. Quando partiu com o meu pai no carro antigo dele, senti um vazio tão grande que quase não conseguia respirar.
A casa ficou estranhamente silenciosa. A Beatriz voltou dias depois e parecia aliviada. O Ricardo tentava animar-me: “Agora podemos reconstruir tudo”, dizia. Mas eu sentia-me despedaçada.
As semanas passaram devagar. Falava com o Tiago todos os dias ao telefone. Ele dizia sempre: “Está tudo bem”, mas eu ouvia-lhe a tristeza na voz. Os meus pais diziam que ele passava horas sozinho no monte ou a desenhar na varanda.
A Beatriz parecia finalmente feliz. Trazia amigas para casa, ria-se alto na sala e até me pedia ajuda nos trabalhos de casa. O Ricardo estava mais relaxado, mas eu sentia-me cada vez mais distante dele.
Uma noite, depois de desligar mais uma chamada fria com o Tiago, sentei-me à mesa da cozinha e chorei como há muito não chorava. O Ricardo entrou e tentou abraçar-me.
— Fizemos o melhor para todos — disse ele.
— Para todos menos para mim — respondi, afastando-o.
Começámos a discutir cada vez mais. Eu culpava-o por ter sugerido aquilo; ele culpava-me por não conseguir seguir em frente. A Beatriz ouvia tudo atrás da porta do quarto.
Um dia recebi uma carta do Tiago. Não era longa:
“Mãe,
Sinto saudades tuas todos os dias. Os avós são queridos mas não és tu. Não sei se algum dia vou conseguir perdoar-te por me teres deixado aqui. Espero que estejas feliz.”
O papel ficou molhado das minhas lágrimas. Liguei-lhe logo de seguida mas ele não quis falar comigo.
Foi nesse momento que percebi: ao tentar salvar a família que tinha construído com o Ricardo, perdi o meu filho. E talvez nunca mais conseguisse recuperar essa ligação.
Os meses passaram e tudo mudou: eu e o Ricardo afastámo-nos cada vez mais até acabarmos por nos separar. A Beatriz foi viver definitivamente com a mãe e eu fiquei sozinha numa casa demasiado grande e silenciosa.
Hoje visito o Tiago sempre que posso em Trás-os-Montes. Ele está mais crescido, mais fechado também. Aos poucos vamos reconstruindo alguma coisa do que perdemos, mas sei que há feridas que nunca vão sarar completamente.
Às vezes pergunto-me: teria sido diferente se tivesse lutado mais? Quantas mães já passaram pelo mesmo dilema? Será possível remendar um coração partido por escolhas feitas em nome do amor?