Quando Encontrei o Verdadeiro Rosto da Minha Sogra
— Ana, não penses que és da família só porque casaste com o meu filho. — As palavras da Dona Milena cortaram o silêncio da cozinha como uma faca afiada. Eu estava de costas para ela, a lavar a loiça do jantar, mas senti o corpo todo gelar. Oiço o tilintar dos talheres na água e, por um momento, penso se ouvi bem. Mas ela repete, mais devagar, como se quisesse que cada sílaba me marcasse: — Nunca serás uma de nós.
Oiço os passos dela a afastarem-se, pesados, arrastando as pantufas pelo chão frio da casa dos meus sogros em Braga. Fico ali, imóvel, com as mãos dentro de água quente e o coração a bater tão forte que quase me faz doer o peito. O Damião está na sala com o nosso filho, o pequeno Tomás, a ver desenhos animados. Não faço ideia se ouviu alguma coisa. Sinto uma vontade súbita de chorar, mas engulo em seco. Não posso mostrar fraqueza. Não agora.
A verdade é que nunca fui aceite naquela casa. Desde o início do namoro com o Damião — conhecemo-nos na universidade do Minho, ele já com aquele ar sério de quem sabia que ia ser militar, eu cheia de sonhos de ser professora — senti sempre um olhar de desconfiança por parte da Dona Milena. O senhor António, o sogro, era mais calado, mas seguia sempre a opinião da mulher. Quando o Damião foi colocado em Lisboa, depois em Évora e finalmente em Braga outra vez, fui sempre eu quem fez as malas, quem deixou amigos para trás, quem tentou criar raízes em cada nova cidade.
Lembro-me do primeiro Natal juntos. Dona Milena fez questão de me sentar na ponta da mesa, longe das conversas principais. Sempre que eu tentava participar, ela mudava de assunto ou respondia com monossílabos. O Damião dizia-me para não ligar: “A minha mãe é assim com toda a gente.” Mas eu via como ela sorria para a irmã dele, a Marta, como lhe passava as batatas assadas e lhe elogiava o vestido novo. Comigo era diferente. Sempre.
Quando engravidei do Tomás, pensei que talvez as coisas mudassem. Que uma criança unisse a família. Mas foi pior. “Tão nova para ser mãe…”, ouvi-a murmurar à vizinha no corredor do hospital. “Não sei se ela vai aguentar esta vida.” Aguentei. Aguentei noites sem dormir, mudanças apressadas porque o Damião era transferido outra vez, saudades dos meus pais em Viseu e uma solidão que me pesava nos ombros como um casaco molhado.
Naquela noite em Braga, depois do jantar, percebi que já não podia fingir que tudo estava bem. Sentei-me na cama ao lado do Damião e contei-lhe o que a mãe tinha dito.
— Ela não quis dizer isso assim… — tentou justificar-se ele.
— Damião, ela disse exatamente isso! — gritei-lhe quase em sussurro para não acordar o Tomás. — Eu não aguento mais sentir-me uma intrusa na tua família.
Ele ficou calado. Olhou para as mãos e depois para mim.
— Queres ir embora?
— Não sei… — respondi-lhe com lágrimas nos olhos. — Só queria sentir que pertenço a algum lado.
No dia seguinte, Dona Milena fez de conta que nada se tinha passado. Serviu-me café e perguntou pelo Tomás como se fosse a avó mais carinhosa do mundo. Mas eu já não conseguia olhar para ela da mesma forma. A máscara tinha caído.
As semanas seguintes foram um inferno silencioso. O Damião começou a chegar mais tarde a casa; dizia que era trabalho no quartel, mas eu sabia que era para evitar discussões. O Tomás perguntava porque é que eu chorava à noite. “É só cansaço, meu amor”, mentia-lhe enquanto lhe fazia festas no cabelo.
Um sábado à tarde, recebi uma chamada da minha mãe:
— Ana, estás bem? Sentes-te feliz aí?
Desatei a chorar ao telefone. Contei-lhe tudo: as palavras da sogra, o afastamento do Damião, o vazio que sentia.
— Filha, volta para casa se precisares. Aqui tens sempre um lugar.
Pela primeira vez em anos senti esperança. Mas também medo: medo de desistir do casamento, medo de separar o Tomás do pai, medo de admitir que falhei.
Nessa noite houve uma discussão feia entre mim e o Damião.
— Sempre foste fraca! — atirou ele num momento de raiva. — A minha mãe tem razão: nunca te esforçaste para seres parte da família!
Senti um estalo invisível no rosto.
— Eu dei tudo! Mudei de cidade por ti! Aguentei desprezos e solidão! — gritei-lhe de volta.
O Tomás apareceu à porta do quarto a chorar.
— Não se zanguem…
Corri para ele e abracei-o com força.
Nos dias seguintes mal falámos um com o outro. O silêncio era tão pesado que até os vizinhos deviam sentir. Dona Milena ligava todos os dias ao filho: “Não deixes essa rapariga estragar-te a vida.” Ouvi uma vez sem querer — ou talvez ela quisesse mesmo que eu ouvisse.
Comecei a fazer malas em segredo. Guardei as roupas do Tomás numa mala azul e as minhas numa mala velha que já tinha ido comigo para tantas cidades diferentes. Escrevi uma carta ao Damião:
“Não posso continuar onde não sou querida nem respeitada. Preciso de reencontrar quem sou antes de ser só tua mulher ou nora da tua mãe. Levo o Tomás comigo para Viseu por uns tempos. Se quiseres falar connosco, sabes onde estamos.”
Na manhã em que parti, Dona Milena estava à porta da cozinha.
— Vais fugir? — perguntou com aquele tom frio.
— Vou procurar paz — respondi-lhe sem tremer.
Ela riu-se.
— Vais voltar de rastos.
Não respondi. Peguei no Tomás pela mão e saí pela porta das traseiras.
Em Viseu fui recebida com abraços apertados e lágrimas felizes dos meus pais. O Tomás correu para o quintal como se tivesse voltado ao lugar onde sempre pertenceu. Eu sentei-me na varanda e chorei tudo o que tinha guardado durante anos.
O Damião ligou três dias depois.
— Preciso de falar contigo — disse ele num tom cansado.
Encontrámo-nos num café perto da casa dos meus pais.
— Não sabia que estavas tão infeliz — confessou ele.
— Porque nunca quiseste ver — respondi-lhe sem raiva, só tristeza.
Ele baixou os olhos.
— A minha mãe sempre foi difícil… Mas eu devia ter-te defendido mais.
Ficámos em silêncio muito tempo.
— Queres voltar? — perguntou finalmente.
Olhei para ele e percebi que já não era aquela rapariga cheia de sonhos da universidade. Era mãe, era mulher ferida mas mais forte do que nunca.
— Quero ser feliz — disse-lhe apenas. — E tu?
Ele não respondeu logo. Ficámos ali sentados até o café fechar.
Hoje vivo em Viseu com o Tomás. O Damião visita-nos aos fins-de-semana; estamos a tentar reconstruir alguma coisa — talvez amizade, talvez outra forma de família. Dona Milena nunca mais me ligou nem perguntou pelo neto. Às vezes dói pensar nisso; outras vezes sinto alívio por finalmente poder respirar sem medo de julgamentos.
Pergunto-me muitas vezes: quantas mulheres vivem presas a famílias onde nunca são aceites? Quantas sacrificam quem são só para agradar aos outros? E vocês? Já sentiram que precisaram fugir para se reencontrarem?