Quando Deixei a Inês: O Preço de um Futuro Melhor
— Vais mesmo deixar-me aqui, mãe? — A voz da Inês, trémula, ecoou pelo corredor frio do nosso apartamento em Almada. Era inverno, e o vento batia nas janelas como se quisesse impedir-me de sair. Eu segurava a mala com força, tentando não tremer, mas por dentro sentia-me a desmoronar.
— Inês, eu… — As palavras ficaram presas na garganta. Como explicar a uma menina de doze anos que a mãe tem de partir para França porque o dinheiro já não chega para pagar a renda, quanto mais para comprar os livros da escola?
Ela olhava-me com aqueles olhos grandes e castanhos, tão parecidos com os meus, mas cheios de uma dor que eu nunca quisera causar. O meu coração batia descompassado. O meu pai, o avô dela, estava ao fundo do corredor, calado, com as mãos nos bolsos. Sabia que não podia fazer mais nada. A minha mãe já tinha morrido há anos e ele fazia o melhor que podia.
— Vais voltar? — insistiu ela, a voz agora quase um sussurro.
Ajoelhei-me à sua frente e abracei-a com força. O cheiro do seu cabelo misturava-se com as lágrimas que me escorriam pelo rosto. — Vou, filha. Prometo que vou voltar. Só preciso de algum tempo para arranjar dinheiro suficiente para termos uma vida melhor.
Ela não respondeu. Ficou ali, imóvel nos meus braços, como se quisesse congelar aquele momento para sempre.
O autocarro para Paris partiu às cinco da manhã. Lembro-me de olhar pela janela e ver a silhueta da Inês à porta de casa, de pijama e casaco, acenando devagar. O meu peito apertou-se tanto que pensei que não ia conseguir respirar.
Os primeiros meses em França foram um inferno. Trabalhava numa padaria das seis da manhã às oito da noite. Dormia num quarto minúsculo com outras duas mulheres portuguesas, a Maria do Carmo e a Teresa. À noite, chorávamos juntas as saudades dos filhos e dos maridos deixados para trás.
Ligava à Inês sempre que podia. No início, ela atendia logo, contava-me da escola, das amigas, das brigas com o avô porque não queria comer sopa. Mas com o tempo as chamadas tornaram-se mais curtas. Às vezes nem atendia. Quando atendia, respondia por monossílabos.
— Está tudo bem? — perguntava eu.
— Está — respondia ela.
— E a escola?
— Normal.
— Tens saudades minhas?
Silêncio.
O avô dizia-me que ela andava mais calada, fechada no quarto. Que tinha começado a faltar às aulas. Que se afastara da melhor amiga, a Joana. Eu sentia-me impotente. O dinheiro que mandava todos os meses servia para pagar as contas e comprar-lhe roupas novas, mas não chegava para preencher o vazio que deixei.
Dois anos depois consegui juntar dinheiro suficiente para vir passar o Natal a casa. Cheguei sem avisar. A Inês estava sentada no sofá, a ver televisão com o avô. Quando me viu à porta, ficou imóvel durante uns segundos. Depois levantou-se devagar e foi para o quarto sem dizer uma palavra.
Fui atrás dela e bati à porta.
— Inês, posso entrar?
— Faz o que quiseres — respondeu ela do outro lado.
Entrei e sentei-me na beira da cama. Ela estava de costas para mim, a olhar pela janela.
— Vim passar o Natal contigo…
— Não precisavas de vir — cortou ela, fria. — Já estou habituada a estar sozinha.
As palavras dela foram como facas. Tentei abraçá-la, mas ela afastou-se.
— Porque é que me deixaste? — perguntou finalmente, com a voz embargada.
— Eu fiz isto por nós…
— Não fizeste por mim! Fizeste por ti! Para te sentires menos miserável! Eu só queria a minha mãe!
Chorei ali mesmo, sem vergonha. Pedi-lhe desculpa mil vezes. Mas ela não quis ouvir.
O Natal foi um silêncio pesado à mesa. O avô tentava animar-nos com piadas antigas, mas ninguém ria. No dia seguinte voltei para França com o coração ainda mais partido do que quando parti da primeira vez.
Os anos passaram. A Inês cresceu sem mim. Fez-se mulher à força, aprendeu a cozinhar sozinha, a tratar da roupa e das contas da casa enquanto eu limpava casas em Paris para famílias que tinham tudo o que eu sonhava dar-lhe.
Quando finalmente consegui regressar de vez a Portugal, ela já tinha vinte anos e estava na universidade em Lisboa. Tentei reaproximar-me dela, mas parecia impossível atravessar o muro que se ergueu entre nós.
Um dia convidei-a para jantar fora. Escolhi um restaurante bonito na Baixa e comprei-lhe flores.
— Mãe — disse ela assim que se sentou à mesa — não precisas de tentar compensar nada com jantares ou presentes.
— Eu só quero estar contigo…
Ela suspirou e olhou-me nos olhos pela primeira vez em anos.
— Sabes quantas vezes precisei de ti? Quando tive medo à noite porque ouvi barulhos estranhos na rua? Quando menstruei pela primeira vez e não sabia o que fazer? Quando fui insultada na escola por ser “a filha da emigrante”? Sabes quantas vezes chorei sozinha porque só queria um abraço teu?
Senti-me esmagada pelo peso das suas palavras. Tentei explicar-lhe tudo: o desespero, o medo de não conseguir dar-lhe uma vida digna em Portugal, as noites sem dormir em França… Mas ela só abanava a cabeça.
— Eu entendo porque foste — disse ela finalmente — mas nunca vou perdoar-te por teres ido.
A nossa relação ficou suspensa nesse limbo durante anos. Falávamos pouco, quase sempre sobre assuntos práticos: contas da casa, documentos, consultas médicas do avô (que entretanto adoeceu). Nunca sobre sentimentos.
Quando o meu pai morreu, foi ela quem tratou de tudo: funeral, papéis do banco, venda da casa antiga. Eu sentia-me uma estranha na minha própria família.
Agora escrevo estas palavras sentada na varanda do pequeno apartamento onde vivo sozinha em Almada. A Inês liga-me de vez em quando — às vezes até vem jantar comigo — mas nunca voltámos a ser mãe e filha como antes.
Às vezes pergunto-me se fiz mesmo o certo ao partir. Será que algum dia conseguirei recuperar o amor da minha filha? Ou há feridas que nem o tempo consegue sarar?