Quando Decidi Viajar Sozinha e a Minha Família Não Me Perdoou
— Não acredito que vais mesmo fazer isto, Mariana! — gritou a minha mãe, com os olhos marejados de lágrimas e a voz a tremer de raiva e incredulidade. O meu pai, sentado à mesa da cozinha, apenas abanava a cabeça, como se eu tivesse cometido o maior dos pecados. A minha irmã, Inês, olhava para mim com uma mistura de inveja e reprovação.
Eu estava de pé, com a mala já feita ao meu lado. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o peso do silêncio que se seguiu ao grito da minha mãe. Senti o coração a bater tão forte que quase não conseguia ouvir mais nada. Respirei fundo e tentei explicar, mais uma vez:
— Preciso disto para mim. Foram cinco anos a trabalhar sem parar, a pagar contas, a ajudar aqui em casa… Preciso de um tempo só para mim. Não é contra vocês.
A minha mãe levantou-se de rompante e apontou-me o dedo:
— Sempre foste tão responsável, Mariana! Sempre puseste a família em primeiro lugar. E agora, quando finalmente podíamos estar todos juntos, decides ir sozinha? Achas justo?
O meu pai finalmente falou, com aquela voz grave que raramente usava:
— A tua mãe tem razão. Não é altura para egoísmos. A tua avó está doente, o teu irmão precisa de ti para estudar para os exames… E tu vais-te embora? Para onde mesmo? Para o Algarve? Para te deitares ao sol enquanto nós ficamos aqui?
Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos, mas recusei-me a chorar. Não queria que pensassem que eu estava arrependida. Não estava. Trabalhei desde os 18 anos para pagar a universidade pública em Lisboa. Fiz turnos duplos num café, dei explicações, abdiquei de fins-de-semana e férias. Quando finalmente terminei o curso de Engenharia Civil e consegui um emprego estável, continuei a ajudar em casa: pagava parte das contas, comprava medicamentos para a avó, dava dinheiro à Inês para os livros da faculdade.
Durante cinco anos, não tive um único dia só para mim. Nem sequer nas festas de aniversário consegui desligar do trabalho ou das preocupações familiares. Quando paguei o último cêntimo do empréstimo estudantil, senti-me livre pela primeira vez na vida. E foi nesse momento que decidi: ia tirar uma semana só para mim. Uma semana no Algarve, sozinha, sem horários nem obrigações.
Mas ninguém percebeu. Ninguém quis perceber.
— Mariana, não podes simplesmente virar costas à família — disse a Inês, finalmente. — Eu também estou cansada, mas não fujo.
— Não estou a fugir! — respondi, já sem conseguir conter as lágrimas. — Só quero descansar um pouco. Só isso.
O silêncio caiu novamente sobre nós. Peguei na mala e saí porta fora antes que mudasse de ideias.
A viagem até ao Algarve foi feita num misto de culpa e alívio. O comboio parecia deslizar lentamente pelas paisagens alentejanas enquanto eu tentava convencer-me de que estava a fazer o certo. No telemóvel, as mensagens da minha mãe acumulavam-se: “Liga-me quando chegares.” “A avó perguntou por ti.” “Não te esqueças do aniversário do teu irmão.”
Cheguei ao hotel já ao fim da tarde. O cheiro do mar era intenso e reconfortante. Pela primeira vez em anos, dormi uma noite inteira sem sobressaltos.
Nos dias seguintes, tentei desligar-me das preocupações familiares. Passei horas na praia a ler romances baratos e a ouvir o som das ondas. Fiz caminhadas sozinha pelos trilhos da costa vicentina e comi peixe grelhado numa esplanada com vista para o mar. Senti-me leve, quase feliz.
Mas a culpa nunca me abandonou completamente. Cada vez que via famílias juntas na praia ou ouvia crianças a rir, lembrava-me dos meus pais e da Inês. Será que estavam mesmo zangados comigo? Ou era só medo de me perderem? Comecei a questionar tudo: teria sido egoísta? Ou finalmente estava a cuidar de mim?
No quarto dia recebi uma chamada do meu pai:
— Mariana… A avó caiu outra vez. Está no hospital.
O chão fugiu-me dos pés. Senti-me imediatamente culpada por não estar lá. Quis apanhar o primeiro comboio de volta, mas o meu pai disse que não era grave — só uns pontos na testa e uns arranhões.
— Não te preocupes — disse ele, num tom mais brando do que esperava. — Aproveita esses dias. Mas quando voltares… temos de conversar.
Desliguei e fiquei sentada na varanda do hotel durante horas, a olhar para o mar escuro e revolto.
No regresso a casa fui recebida com frieza. A minha mãe mal me olhou nos olhos durante dias. O meu irmão nem falou comigo no jantar de domingo. Só a minha avó me sorriu:
— Fizeste bem em descansar, menina. A vida é curta demais para viver só para os outros.
As palavras dela ficaram-me gravadas na memória.
Passaram-se semanas e o ambiente em casa continuou tenso. A minha mãe esperava um pedido de desculpas que eu não estava disposta a dar. O meu pai evitava falar do assunto e Inês continuava a lançar-me olhares acusadores sempre que eu dizia que ia sair com amigos ou precisava de tempo para mim.
Uma noite, depois do jantar, sentei-me à mesa com eles:
— Sei que ficaram magoados comigo — comecei, com a voz trémula mas firme — mas eu também preciso de cuidar de mim. Não posso ser sempre eu a carregar tudo às costas.
A minha mãe chorou baixinho e disse:
— Só temos medo de te perder…
O meu pai suspirou:
— Cresceste depressa demais, Mariana.
Nesse momento percebi que talvez nunca me perdoassem completamente por ter escolhido pensar em mim por uma vez na vida. Mas também percebi que não podia continuar a viver só para agradar aos outros.
Hoje olho para trás e pergunto-me: será egoísmo querer ser feliz? Será errado querer respirar fundo longe das obrigações familiares? Ou será que todos precisamos de aprender a pôr-nos em primeiro lugar de vez em quando?
E vocês? Já sentiram culpa por escolherem cuidar de vocês próprios?