Quando Decidi Fugir do Barulho: O Preço da Minha Liberdade
— Então é assim, mãe? Vais sozinha, sem sequer nos dizer nada? — A voz da minha filha, Mariana, ecoava pelo corredor, carregada de mágoa e incredulidade. Eu estava sentada à mesa da cozinha, as mãos ainda trémulas a segurar a chávena de café, enquanto olhava para o envelope do banco que confirmava: a casa era finalmente minha.
Respirei fundo. O cheiro a café misturava-se com o perfume antigo das flores que a minha mãe, Dona Lurdes, insistia em pôr na jarra. Era suposto ser um momento de celebração, mas o ambiente estava carregado como uma trovoada prestes a rebentar.
— Mariana, filha, não é nada disso… — tentei explicar, mas ela já tinha virado costas. O meu filho mais novo, Tiago, olhava-me com aqueles olhos castanhos tão parecidos com os do pai. — Mãe, custa assim tanto quereres estar connosco? — perguntou, a voz baixa, quase um sussurro.
A verdade é que durante vinte e cinco anos trabalhei sem parar. Fui funcionária administrativa numa escola pública em Setúbal, sempre a correr entre papéis, reuniões e as necessidades dos meus filhos. O António, meu marido, partiu cedo demais — um acidente na estrada deixou-me viúva aos 39 anos. Desde então, fui mãe e pai, pilar e abrigo. Cada tostão que entrava era contado. Não havia férias para mim; havia livros escolares para eles, consultas médicas para a minha mãe, contas para pagar.
Quando finalmente paguei a última prestação do empréstimo da casa — aquela casa onde vi os meus filhos crescerem, onde chorei noites inteiras de medo e cansaço — senti-me livre pela primeira vez em décadas. E foi nesse impulso de liberdade que reservei três noites numa casa rural em Trás-os-Montes. Queria silêncio. Queria ouvir os meus próprios pensamentos. Queria dormir sem o peso do mundo nos ombros.
Mas ninguém entendeu.
Naquela noite, o jantar foi um campo de batalha silencioso. A minha mãe olhava-me com aquele olhar reprovador que só as mães portuguesas sabem dar. — Filha, não percebo… Vais sozinha? Não tens medo? — perguntou ela, mexendo no arroz como se procurasse respostas entre os grãos.
— Mãe, preciso de um tempo para mim. Só isso. Não é contra vocês… — tentei justificar-me.
— Mas porque não vamos todos? — interrompeu Mariana. — Sempre fizemos tudo juntos! Agora que finalmente temos algum alívio financeiro, tu foges?
O Tiago largou os talheres e saiu da mesa sem dizer palavra.
A noite caiu pesada sobre mim. Fui para o quarto e sentei-me na cama, a olhar para as paredes cheias de fotografias: os aniversários das crianças, o António a sorrir no jardim, a minha mãe mais nova a segurar o Tiago bebé. Senti-me egoísta. Senti-me ingrata. Mas também senti uma raiva surda: quando é que eu tinha tido direito a ser só eu?
No dia seguinte, antes de sair para o trabalho, deixei um bilhete na mesa: “Preciso deste tempo. Amo-vos.”
A viagem até Trás-os-Montes foi feita num silêncio confortável. O rádio tocava fado baixo e eu deixava as lágrimas correrem sem vergonha. Cheguei à casa rural ao fim da tarde; o cheiro a terra molhada e lareira acesa trouxe-me uma paz estranha. Passei os dias a caminhar pelos montes, a ouvir o vento nas árvores e o som distante dos sinos das ovelhas.
Mas cada vez que pegava no telemóvel via mensagens dos meus filhos: “Ainda estás zangada connosco?” “Quando voltas?” “A avó está triste.”
No terceiro dia recebi uma chamada da Mariana.
— Mãe… desculpa se fui dura contigo. Só… só não percebo porque precisas de estar sozinha agora que finalmente podemos estar todos juntos sem preocupações.
— Mariana, filha… — a voz saiu-me embargada — Eu amo-vos mais do que tudo. Mas preciso de me reencontrar. Preciso de saber quem sou para além de ser vossa mãe.
— E nós? — perguntou ela baixinho — Quem somos nós sem ti?
Fiquei sem resposta.
Voltei para casa com o coração apertado. A minha mãe recebeu-me com um abraço silencioso; Mariana evitou-me durante dias; Tiago fechou-se ainda mais no quarto dele. O ambiente estava tenso, como se eu tivesse traído uma promessa invisível.
No domingo seguinte tentei juntar todos à mesa para um almoço. Fiz bacalhau à Brás como nos velhos tempos. O cheiro espalhou-se pela casa e por momentos quase consegui acreditar que tudo estava bem.
— Mãe… — começou Tiago — Tu vais fazer isto mais vezes?
Olhei para ele e vi medo nos olhos dele: medo de me perder, medo de perder o pouco que restava da nossa família.
— Não sei, filho. Mas prometo que nunca vos vou abandonar. Só preciso de aprender a cuidar de mim também.
A minha mãe suspirou fundo.
— Quando o teu pai morreu eu também quis fugir… mas fiquei por vocês. Talvez tenha sido isso que me fez perder partes de mim mesma.
O silêncio caiu pesado outra vez.
Mariana levantou-se e abraçou-me pela primeira vez desde que voltei.
— Só não queremos perder-te, mãe.
Senti as lágrimas caírem outra vez, mas desta vez eram de alívio.
Hoje olho para trás e pergunto-me: será egoísmo querer um pouco de paz depois de uma vida inteira de sacrifícios? Ou será que nos esquecemos demasiado depressa de quem somos quando passamos anos a viver pelos outros?
E vocês? Já sentiram este peso entre o dever e o desejo? Como encontraram o vosso equilíbrio?