Quando Corrigir a Sobrinha se Torna um Crime: O Dia em que Fui Feita Vilã pela Minha Própria Irmã
— Marta, não tens mesmo jeito nenhum para crianças! — O grito da minha irmã ecoou pela sala, tão cortante quanto uma lâmina afiada. Eu ainda segurava a tesoura na mão, o cabelo da cliente meio aparado, e a pequena Beatriz — a minha sobrinha de seis anos — fitava-me com olhos arregalados, entre o medo e a birra.
Nunca quis ser mãe. Não era segredo para ninguém. O meu marido, Rui, também não se importava. Vivíamos bem no nosso apartamento modesto em Almada, onde montei o meu pequeno salão improvisado na sala. As manhãs eram tranquilas, cheias de luz e cheiro a café acabado de fazer. Mas tudo mudava quando a minha irmã, Sílvia, aparecia com a Beatriz. Às vezes vinha o cunhado, mas quase sempre era só ela e a menina.
Sílvia era dessas mães que falam da filha como se fosse uma princesa intocável. “A Beatriz é tão criativa! Olha só como ela pinta as paredes!” ou “Ela é muito independente, não gosta de regras.” Eu sorria, fingia interesse, mas por dentro revirava os olhos. Não era fácil ouvir histórias intermináveis sobre birras e conquistas infantis enquanto tentava manter o foco nas clientes e nos cortes de cabelo.
Naquele sábado, Sílvia chegou cedo, sem avisar. Trazia Beatriz pela mão e um saco de brinquedos. — Marta, hoje vou precisar de ti. Tenho uma reunião importante e não posso levar a miúda. Ficas com ela só umas horinhas? — perguntou, já largando tudo no chão.
Não tive tempo de responder. Sílvia já estava a sair porta fora, deixando-me sozinha com uma criança hiperativa e uma agenda cheia de clientes.
Beatriz começou logo a correr pela casa, espalhando brinquedos e gritando. Tentei distraí-la com desenhos animados, mas ela queria atenção. Enquanto cortava o cabelo à Dona Lurdes, senti algo húmido nos pés: Beatriz tinha entornado sumo de laranja no tapete novo.
— Beatriz! — chamei num tom mais firme. — Não podes fazer isso! Olha o que fizeste ao tapete da tia!
Ela encolheu os ombros e continuou a brincar. Respirei fundo. Quando terminei o corte da Dona Lurdes, fui limpar o tapete. Beatriz aproveitou para abrir as gavetas do móvel do corredor e espalhar tudo pelo chão.
— Chega! — disse eu, já sem paciência. — Vais sentar-te aqui no sofá e não sais até a tua mãe voltar!
Ela fez beicinho, mas obedeceu. Passados cinco minutos, começou a chorar alto. Ignorei. Tinha clientes à espera e não podia perder o controlo.
Quando Sílvia voltou, encontrou a filha ainda a chorar no sofá. — O que se passa aqui? — perguntou, alarmada.
Expliquei-lhe calmamente o que tinha acontecido. Sílvia não quis saber dos detalhes. — Não acredito que foste capaz de castigar uma criança desta maneira! Ela só tem seis anos! — gritou.
Tentei argumentar: — Sílvia, ela não pode fazer tudo o que quer! Tens de lhe impor limites…
— Tu não percebes nada de crianças porque não tens filhos! — atirou ela, com uma raiva que nunca lhe tinha visto.
O ambiente ficou pesado. A cliente seguinte levantou-se e saiu discretamente. Rui apareceu à porta da cozinha, hesitante.
— Marta… talvez devesses ter mais calma com a miúda… — murmurou ele.
Senti-me sozinha. De repente, era eu contra todos. A vilã da história.
Nos dias seguintes, Sílvia deixou de me falar. As mensagens secaram. A minha mãe ligou-me: — O que fizeste à tua sobrinha? A Sílvia está inconsolável…
Expliquei tudo outra vez, mas ninguém parecia ouvir-me. Para eles, eu era fria, insensível, incapaz de compreender o mundo das crianças.
No salão improvisado, as clientes começaram a comentar baixinho: — Ouvi dizer que a Marta foi muito dura com a filha da irmã… — sussurravam.
Senti-me julgada por toda a gente. Até Rui evitava falar do assunto.
Uma noite, sentei-me no sofá com um copo de vinho e chorei baixinho. Sempre tentei ajudar a minha família. Sempre estive lá para Sílvia quando ela precisou — quando o marido dela ficou desempregado, quando ela teve aquela crise de ansiedade depois do parto… E agora era eu a má da fita?
Comecei a duvidar de mim própria. Será que fui mesmo demasiado dura? Será que devia ter deixado Beatriz fazer o que quisesse?
Os dias passaram lentos e pesados. O silêncio entre mim e Sílvia tornou-se insuportável. A minha mãe insistia para fazermos as pazes: — Vocês são irmãs! Não podem ficar assim por causa de uma birra!
Mas eu sentia-me injustiçada. Ninguém queria saber da minha versão dos factos.
Um mês depois, Sílvia apareceu à porta sem avisar. Trazia Beatriz pela mão.
— Podemos falar? — perguntou ela, com voz trémula.
Sentámo-nos à mesa da cozinha. Sílvia olhou-me nos olhos:
— Sei que exagerei… Mas custa-me ver alguém ralhar com a minha filha…
Suspirei:
— Eu só queria ajudar-te… Mas não posso deixar que ela destrua tudo cá em casa…
Beatriz olhava para mim em silêncio. Pela primeira vez vi nela um olhar de respeito — ou talvez apenas medo.
Sílvia chorou baixinho:
— Tenho medo de ser má mãe… Tenho medo que ela não goste de mim se lhe disser “não”…
Abracei-a:
— Educar também é dizer “não”, Sílvia… Não és má mãe por isso.
Ficámos ali abraçadas muito tempo. Beatriz veio juntar-se ao abraço.
A reconciliação foi lenta, mas sincera. Ainda hoje há silêncios desconfortáveis quando falamos de educação infantil. Mas aprendi que cada família tem as suas feridas e os seus limites.
Às vezes pergunto-me: será que fiz bem em impor limites à minha sobrinha? Ou será que há coisas que só quem é mãe pode entender? E vocês? Já passaram por algo assim? Como lidaram com o peso de ser mal compreendidos pela família?