Quando a Vida se Parte: O Dia em que a Sofia Lutou Pela Própria Vida
— Não me deixes sozinho, Sofia. Por favor, aguenta só mais um bocadinho… — sussurrei-lhe ao ouvido, enquanto as luzes frias do hospital me faziam tremer por dentro e por fora. O cheiro a desinfetante misturava-se com o medo que me subia à garganta. A Sofia estava pálida, os olhos semicerrados, e eu sentia-me impotente, como se tudo o que conhecia estivesse prestes a ruir.
Nunca pensei que uma terça-feira pudesse mudar tanto uma vida. De manhã, discutimos por causa das contas — outra vez o gás atrasado, outra vez o miúdo mais novo com febre e a minha mãe a ligar para dizer que não podia ficar com eles à tarde. A Sofia estava cansada, eu também. Mas nunca pensei que aquela dor no peito que ela sentiu ao almoço fosse tão grave. “É só ansiedade”, disse ela, tentando sorrir. Mas eu vi nos olhos dela que era mais do que isso.
Quando ela caiu na cozinha, o barulho da loiça a partir-se ecoou pela casa. O Miguel, nosso filho mais velho, gritou. Eu corri, ajoelhei-me ao lado dela e chamei o 112 com as mãos a tremer. O tempo entre o telefonema e a chegada da ambulância pareceu uma eternidade. O Miguel chorava, a Leonor agarrava-se às minhas pernas sem perceber o que se passava.
No hospital, tudo era pressa e silêncio ao mesmo tempo. Médicos a correr, portas a fechar-se na minha cara. Fiquei sozinho no corredor, com os miúdos sentados num banco duro. O Miguel olhava para mim com olhos de adulto, como se quisesse perguntar se a mãe ia morrer. Não consegui responder-lhe.
A minha irmã, a Teresa, chegou pouco depois. “Já sabes alguma coisa?”, perguntou-me, mas eu só consegui abanar a cabeça. Ela abraçou-me e eu senti-me pequeno outra vez, como quando era criança e ela me defendia dos miúdos mais velhos na escola.
As horas passaram devagar. O meu telemóvel tocava sem parar — a minha mãe, o meu sogro, colegas do trabalho. Não queria falar com ninguém. Só queria ouvir alguém dizer: “Ela vai ficar bem”.
Quando finalmente um médico apareceu, o rosto dele era uma máscara de cansaço. “A sua esposa teve um enfarte agudo do miocárdio. Estamos a fazer tudo o que podemos.” As palavras dele caíram sobre mim como pedras. Enfarte? A Sofia tem 38 anos! Sempre foi saudável…
A Teresa tentou animar os miúdos com histórias e desenhos, mas eu via nos olhos dela o mesmo medo que sentia em mim. O Miguel não largava o telemóvel — mandava mensagens ao avô e à tia Ana, como se escrever pudesse mudar alguma coisa.
Quando finalmente pude ver a Sofia, ela estava ligada a máquinas, tubos por todo o lado. Sentei-me ao lado dela e peguei-lhe na mão. “Desculpa por tudo”, murmurei. Desculpa pelas discussões parvas, pelo tempo que não te dei atenção, por não ter percebido antes que estavas mal.
Naquela noite não dormi. Fiquei sentado na sala de espera com a Teresa. Discutimos baixinho — ela dizia que eu devia ter reparado nos sinais de cansaço da Sofia, eu dizia que ela também nunca ajudava com os miúdos como prometia. “A culpa não é de ninguém”, disse ela por fim, mas eu não conseguia deixar de me sentir responsável.
Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. A Sofia melhorava devagarinho, mas cada vez que um alarme tocava no quarto dela eu sentia o coração parar. A minha mãe veio ajudar com os miúdos — mas logo começaram as discussões: “Não lhes dês doces ao pequeno-almoço!”, “Deixa-os ver televisão só mais um bocadinho!” Eu gritava com ela sem razão e depois arrependia-me.
O trabalho ficou para segundo plano. O meu chefe ligou-me: “Precisas de tempo?” Preciso de tudo menos tempo — preciso da Sofia em casa, preciso da vida de volta ao normal.
Uma tarde, sentei-me com o Miguel no parque do hospital. Ele olhou para mim e perguntou:
— O que acontece se a mãe morrer?
Fiquei sem palavras. Abracei-o com força e disse-lhe:
— A mãe vai lutar até ao fim. E nós vamos estar aqui para ela.
Mas por dentro tremia de medo.
A família da Sofia começou a aparecer mais vezes — cada um com uma opinião diferente sobre o que devíamos fazer. A irmã dela queria levá-la para Lisboa para ser tratada lá; o pai achava que devíamos confiar nos médicos do hospital local. Discutiam à minha frente como se eu não existisse.
Uma noite, depois de todos irem embora, sentei-me sozinho no carro e chorei pela primeira vez em muitos anos. Chorei pelo medo de perder a mulher da minha vida; chorei pela culpa de não ter sido melhor marido; chorei pela raiva de ver a família dividida quando mais precisávamos uns dos outros.
Aos poucos, fui percebendo que não podia controlar tudo — nem as máquinas do hospital, nem as opiniões dos outros, nem sequer os meus próprios sentimentos. Tive de aprender a pedir ajuda: à Teresa para ficar com os miúdos; à minha mãe para cozinhar; aos amigos para ouvirem os meus desabafos sem julgarem.
Quando finalmente a Sofia acordou e me sorriu — um sorriso fraco mas verdadeiro — senti uma onda de esperança misturada com medo: será que algum dia voltaremos ao normal? Ou será que este susto vai mudar-nos para sempre?
Agora que escrevo isto, ainda estou sentado ao lado dela no hospital. Os miúdos vêm visitá-la todos os dias; discutimos menos sobre coisas pequenas e abraçamo-nos mais vezes sem motivo aparente.
Pergunto-me muitas vezes: porque é que só damos valor ao essencial quando sentimos que podemos perdê-lo? Será possível reconstruir uma família depois de tanto medo e tanta dor? E vocês — já passaram por algo assim? Como encontraram força quando tudo parecia perdido?