Quando a Vida nos Vira do Avesso: Entre o Amor de Mãe e as Nossas Próprias Limitações
— Mãe, preciso falar contigo. Agora.
As palavras da Catarina ecoaram pelo corredor, carregadas de urgência e algo mais — talvez medo, talvez vergonha. Eu estava a preparar o jantar, as mãos ainda molhadas de lavar os legumes, quando ela entrou na cozinha, os olhos vermelhos e as mãos a tremer.
— O que se passa, filha? — perguntei, tentando manter a voz calma, mas o coração já me batia descompassado. Catarina nunca foi de dramatismos, sempre tão racional, tão dona de si. Desde pequena dizia que não queria filhos, que o mundo era demasiado complicado, que queria liberdade. Eu aceitava, ou pelo menos tentava aceitar, mesmo que no fundo sonhasse com netos, com risos de criança a encherem a casa.
Ela sentou-se à mesa, respirou fundo e largou:
— Estou grávida.
O silêncio caiu pesado entre nós. O relógio da parede marcava cada segundo como se fosse uma sentença. Senti o chão fugir-me dos pés, mas não podia mostrar fraqueza. Ela precisava de mim.
— Catarina… — comecei, mas ela interrompeu-me.
— Não sei o que fazer, mãe. Não queria isto. Não sei se consigo… — a voz dela quebrou-se, e eu vi a menina que ela tinha sido, perdida, a pedir colo.
Abracei-a, sentindo o corpo dela rígido, como se ainda resistisse ao próprio desespero. O cheiro do seu cabelo trouxe-me memórias de quando era pequena, quando eu era o porto seguro dela. Agora, sentia-me tão impotente.
— Vamos resolver isto juntas, filha. Não estás sozinha.
Mas por dentro, eu própria estava cheia de dúvidas. Será que conseguiria ser o apoio que ela precisava? Eu, que sempre tentei respeitar as escolhas dela, mesmo quando me custavam? E agora, quando ela mais precisava de mim, será que era capaz de pôr de lado os meus próprios sonhos e medos?
Os dias seguintes foram um turbilhão. Catarina fechou-se no quarto, faltou ao trabalho, ignorou as mensagens dos amigos. O pai dela, o António, percebeu logo que algo não estava bem.
— O que se passa com a Catarina? — perguntou-me numa noite, enquanto arrumávamos a loiça.
— Está… está a passar por um momento difícil — respondi, hesitante. Não sabia se devia contar-lhe. O António sempre foi mais tradicional, daqueles que acham que uma mulher deve casar, ter filhos, seguir o caminho certo. Tinha medo do julgamento dele, mas sabia que não podia esconder-lhe aquilo por muito tempo.
Na manhã seguinte, Catarina apareceu na cozinha de pijama, olheiras fundas e uma expressão vazia.
— Decidi que vou ter o bebé — disse, sem rodeios.
O António, que estava a beber café, quase deixou cair a chávena.
— Como assim? — perguntou, atónito.
Ela olhou para ele, desafiante e vulnerável ao mesmo tempo.
— Não consigo… não consigo interromper. Mas também não sei se consigo ser mãe. Preciso de ajuda.
O António ficou em silêncio. Eu vi nos olhos dele o conflito entre o orgulho e o medo. Ele sempre quis ser avô, mas não assim, não desta forma, não com a filha tão perdida.
Os dias passaram e a barriga da Catarina começou a crescer. Ela recusava-se a sair de casa, evitava as vizinhas, não queria ouvir perguntas nem conselhos. Eu tentava animá-la, mas sentia-me cada vez mais exausta. Trabalhava durante o dia, cuidava dela à noite, e ainda tinha de gerir as emoções do António, que oscilava entre a esperança e a frustração.
Uma noite, ouvi-a chorar no quarto. Entrei sem bater e encontrei-a sentada na cama, abraçada a uma almofada.
— Tenho medo, mãe. Medo de não gostar do meu filho. Medo de ser como tu — disse ela, num sussurro.
Fiquei sem ar. Sempre temi que ela me visse como uma mãe falhada, demasiado exigente, demasiado ausente. Sentei-me ao lado dela e peguei-lhe na mão.
— Eu também tive medo, Catarina. Quando soube que estava grávida de ti, pensei que não ia conseguir. Mas aprendi a amar-te todos os dias. O amor constrói-se, filha. Não nasce perfeito.
Ela chorou no meu ombro durante minutos que pareceram horas. Senti que, pela primeira vez em muito tempo, estávamos realmente próximas.
Os meses avançaram e Catarina começou a aceitar a ideia de ser mãe. Comprámos roupinhas, pintámos o quarto do bebé, fomos juntas às consultas. Mas o medo nunca desapareceu completamente. Havia dias em que ela me olhava como se eu fosse a única coisa que a mantinha à tona.
Quando o bebé nasceu — um menino, o Martim —, Catarina entrou em pânico. Recusava-se a pegar nele, dizia que não sabia o que fazer. Passei noites em claro, a cuidar do neto e da filha, sentindo-me cada vez mais velha, mais cansada.
O António tentou ajudar, mas não sabia como lidar com aquela fragilidade. Uma noite, discutimos feio.
— Não podemos continuar assim! — gritou ele. — Estamos a criar uma filha dependente, uma neta sem mãe!
— E queres que faça o quê? Que a abandone? — respondi, furiosa.
Ele saiu de casa nessa noite. Voltou dois dias depois, mais calmo, mas algo tinha mudado entre nós. A tensão era palpável.
Catarina começou a ir a terapia. Aos poucos, foi ganhando confiança. Um dia, entrou na cozinha com o Martim ao colo e um sorriso tímido.
— Acho que estou a começar a gostar disto — disse.
Chorei de alívio. Senti que todo o esforço tinha valido a pena. Mas também percebi que tinha chegado ao meu limite. O meu corpo doía, a minha cabeça estava exausta. Tinha dado tudo o que podia.
Hoje, olho para a Catarina e para o Martim e sinto orgulho. Mas também sinto medo. Medo de que ela volte a cair, medo de não conseguir estar sempre lá para ela. Pergunto-me se fiz tudo certo, se devia ter sido mais dura, mais distante. Ou se, pelo contrário, devia ter sido ainda mais presente.
A vida nunca é como planeamos. Às vezes, os nossos filhos surpreendem-nos — para o bem e para o mal. E nós, mães, ficamos sempre a meio caminho entre o amor e o cansaço, entre o desejo de proteger e a necessidade de os deixar voar.
Será que alguma vez estamos verdadeiramente preparadas para os desafios que a vida nos traz? Ou aprendemos apenas a sobreviver, um dia de cada vez? Gostava de saber o que fariam no meu lugar.