Quando a tempestade bate à porta: Segredos da minha filha e o vendaval na nossa família
— Avó, por favor, abre! — ouvi a voz da Inês, trémula, quase sufocada pelo vento e pela chuva que castigavam a noite de novembro. O relógio marcava quase duas da manhã. O meu coração disparou. Corri até à porta, tropeçando no tapete da entrada, e abri com mãos trémulas. Ali estava ela: a minha neta de dez anos, encharcada até aos ossos, os olhos vermelhos de tanto chorar.
— Onde está a tua mãe? — perguntei, já com lágrimas nos olhos, puxando-a para dentro e envolvendo-a numa manta.
Ela não respondeu. Limitou-se a soluçar, agarrada ao meu peito como se eu fosse o último porto seguro no meio daquela tempestade. O silêncio dela era mais ensurdecedor do que qualquer trovão lá fora.
Enquanto lhe preparava um chá quente, o meu pensamento voava para Mariana, a minha filha. Onde estaria? O que teria acontecido? A nossa relação nunca foi fácil. Desde pequena, Mariana era rebelde, inquieta, sempre à procura de algo que eu nunca consegui perceber. Discutíamos por tudo e por nada: as notas da escola, as amizades duvidosas, as saídas à noite. Quando engravidou de Inês aos vinte anos, temi pelo futuro das duas. Mas Mariana sempre foi orgulhosa demais para pedir ajuda.
— Inês, querida, tens de me dizer o que aconteceu — insisti, sentando-me ao lado dela no sofá.
Ela olhou-me com uns olhos tão grandes e assustados que me partiram o coração.
— A mãe saiu… disse que ia voltar… mas não voltou. Esperei muito tempo. Depois começou a chover muito e eu fiquei com medo… Vim para aqui — murmurou.
Abracei-a com força. Por dentro, sentia-me a desmoronar. Liguei para o telemóvel da Mariana dezenas de vezes naquela noite. Caixa de mensagens. Liguei ao Pedro, o namorado dela — ou ex-namorado? Já nem sabia em que ponto estavam — mas ele também não sabia de nada.
As horas passaram lentas. Inês adormeceu no meu colo. Eu fiquei ali, imóvel, a olhar para o vazio da sala escura. A culpa corroía-me: será que falhei como mãe? Será que devia ter feito mais por Mariana? Será que devia ter sido menos dura quando ela precisava de compreensão?
Na manhã seguinte, fui à polícia. Deram-me um papel para preencher e disseram para esperar. “Adultos desaparecem muitas vezes por vontade própria”, disseram-me com um encolher de ombros burocrático. Mas eu conhecia a minha filha — ou pensava conhecer. Mariana nunca abandonaria Inês.
Os dias seguintes foram um tormento. A vizinhança começou a cochichar: “A Mariana sempre foi problemática”, “Aquilo não ia acabar bem”. Eu tentava proteger Inês desses comentários cruéis, mas ela percebia tudo. À noite chorava baixinho no quarto de hóspedes.
Uma semana depois do desaparecimento da Mariana, recebi uma carta sem remetente. As mãos tremeram-me ao abri-la:
“Mãe,
Se estás a ler isto é porque precisei de fugir. Não procures por mim. Preciso de tempo para pensar e pôr a cabeça em ordem. Cuida da Inês como só tu sabes fazer.
Desculpa por tudo.
Mariana”
Senti um misto de alívio e revolta. Como pôde ela abandonar assim a filha? Como pôde ela fugir dos problemas em vez de os enfrentar? Mas depois lembrei-me das discussões acesas que tivemos nos últimos meses: sobre o Pedro, sobre o trabalho precário dela num café do centro de Lisboa, sobre as dificuldades em pagar a renda… Talvez eu tenha sido demasiado exigente.
Inês tornou-se ainda mais silenciosa. Recusava-se a ir à escola. Passava horas a desenhar no caderno ou a olhar pela janela do quarto.
— Avó… achas que a mãe vai voltar? — perguntou-me uma noite, com voz quase inaudível.
Engoli em seco antes de responder:
— Vai voltar, querida. Só precisa de algum tempo.
Mas nem eu acreditava nisso.
Certo dia, enquanto arrumava o quarto da Mariana à procura de alguma pista sobre o seu paradeiro, encontrei uma caixa escondida no fundo do roupeiro. Lá dentro estavam cartas antigas trocadas com alguém chamado Rui — um nome que nunca ouvira antes — e fotografias de Mariana com um homem desconhecido e uma criança pequena… Não era Inês.
O choque foi tão grande que tive de me sentar na cama. Quem era aquela criança? E aquele homem? Porque é que Mariana nunca me falou deles?
Naquela noite não consegui dormir. Acordei Inês cedo na manhã seguinte:
— Inês, conheces este homem? — perguntei-lhe mostrando-lhe uma das fotografias.
Ela olhou atentamente e abanou a cabeça.
— Nunca vi… Quem é?
— Não sei… Mas vou descobrir.
Procurei o nome Rui nas redes sociais e acabei por encontrar um perfil que correspondia ao rosto das fotografias. Mandei-lhe uma mensagem privada: “Sou a mãe da Mariana. Preciso falar consigo urgentemente.” Não obtive resposta durante dias.
Entretanto, Pedro apareceu cá em casa para ver Inês. Trazia um ar cansado e olheiras profundas.
— Sabe alguma coisa da Mariana? — perguntou-me à porta.
— Só uma carta… E você?
Ele abanou a cabeça e baixou os olhos.
— Ela andava estranha ultimamente… Falava muito desse tal Rui… Eu pensei que era só um amigo antigo…
O silêncio instalou-se entre nós como uma parede intransponível.
Na semana seguinte recebi finalmente resposta do Rui: “Podemos falar amanhã às 15h no café Central.” O coração batia-me descompassado quando lá cheguei.
Rui era um homem na casa dos quarenta, olhar cansado mas gentil. Sentou-se à minha frente e respirou fundo antes de falar:
— A Mariana apareceu cá há uns meses… Disse-me que precisava de ajuda… Que estava desesperada…
— Ajuda com quê?
Ele hesitou.
— Com dinheiro… E com o filho dela…
Fiquei gelada.
— Filho?
Rui assentiu.
— Sim… O Tiago… Tem cinco anos…
O mundo pareceu desabar à minha volta.
— Mas… ela nunca me falou desse menino!
Rui olhou-me nos olhos.
— Ela tinha medo do seu julgamento… Disse-me que você nunca aceitaria outro filho fora do casamento…
Senti uma dor aguda no peito. Era verdade? Fui assim tão dura com ela?
Rui contou-me então que Mariana tinha deixado Tiago aos seus cuidados temporariamente enquanto tentava resolver “assuntos pendentes” com Pedro e garantir estabilidade para Inês. Mas depois desapareceu também dali há duas semanas.
Voltei para casa devastada. Como podia eu ter estado tão cega? Como podia não ter percebido o sofrimento da minha filha?
Nessa noite sentei-me com Inês e contei-lhe tudo:
— Tens um irmãozinho chamado Tiago…
Ela ficou em silêncio durante muito tempo antes de perguntar:
— Podemos conhecê-lo?
No dia seguinte fomos juntos ao encontro do Rui e do Tiago. Quando Inês viu o irmão pela primeira vez correu para ele e abraçou-o sem hesitar. Eu chorei baixinho ao ver aquela cena — dois irmãos separados por segredos e medos dos adultos.
Os meses passaram devagarinho. Nunca mais tivemos notícias da Mariana. A polícia encerrou o caso como “desaparecimento voluntário”. Eu assumi a guarda dos dois netos com o apoio relutante do Rui e do Pedro.
A nossa casa encheu-se de risos tímidos e choros noturnos; de perguntas sem resposta e desenhos colados no frigorífico; de esperança misturada com saudade.
Às vezes dou por mim sentada sozinha na sala escura, a olhar para as fotografias antigas da Mariana em criança — tão sorridente, tão cheia de sonhos — e pergunto-me onde falhei como mãe. Será que fui demasiado dura? Será que deixei de ouvir quando ela mais precisava?
E vocês? Acham que é possível reparar os erros do passado? Ou há feridas familiares que nunca saram completamente?