Quando a Sogra Quer Mandar no Natal: Porque Recusei Fazer o Bacalhau
— Inês, não te esqueças de lavar bem o bacalhau. E olha que este ano não quero desculpas, está bem? — A voz da Dona Lurdes ecoou pela cozinha, cortando o silêncio tenso como uma faca afiada.
Agarrei o pano de prato com força, sentindo as mãos suadas. O cheiro do bacalhau demolhado misturava-se ao aroma do café acabado de fazer, mas nada conseguia disfarçar o peso no ar. O Natal sempre foi uma época complicada desde que casei com o Rui. A família dele, tradicional até ao tutano, fazia questão de manter cada ritual, cada receita, como se a felicidade dependesse disso. E Dona Lurdes era a guardiã suprema dessas tradições.
No ano passado, o bacalhau ficou salgado demais. Chorei no quarto de banho enquanto todos à mesa tentavam disfarçar as caretas. Rui apertou-me a mão por baixo da mesa, mas senti o olhar da sogra cravado em mim, como se tivesse cometido um crime imperdoável. Este ano, ela decidiu que eu devia repetir a dose — mas sob a sua supervisão.
— Não, Dona Lurdes. Este ano não vou fazer o bacalhau. — As palavras saíram-me antes de conseguir pensar. O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. O Rui, que estava a pôr a mesa, parou, os talheres a meio caminho do prato.
— Como assim, Inês? — perguntou ele, a voz baixa, como se tivesse medo de acordar um monstro adormecido.
— Estou cansada de sentir que nunca faço nada bem. O bacalhau, o arroz-doce, até o bolo-rei… Nunca está bom. — Senti as lágrimas a ameaçarem, mas forcei-me a continuar. — Este ano quero só estar com a família, não quero passar o dia a ser avaliada.
Dona Lurdes cruzou os braços, o avental florido a contrastar com a expressão dura. — Se cada uma faz como quer, isto vira uma anarquia. O Natal é tradição. E tradição é respeito.
O Rui tentou intervir. — Mãe, deixa a Inês descansar este ano. Podemos encomendar o bacalhau feito, ninguém vai notar…
— Não! — cortou ela, batendo com a mão na bancada. — Aqui em casa, o bacalhau faz-se como sempre se fez. Se a Inês não quer, faço eu. Mas depois não se queixe se não aprender nada.
Saí da cozinha, o coração aos pulos. Fui para o quarto e sentei-me na cama, as mãos a tremer. Lembrei-me do meu próprio Natal em casa dos meus pais, em Braga. Lá, a minha mãe ria-se dos desastres culinários e o meu pai fazia piadas sobre o arroz empapado. Senti saudades de casa, de um Natal sem julgamentos.
O Rui entrou pouco depois, sentou-se ao meu lado. — Desculpa, Inês. A minha mãe é assim, sabes como ela é…
— Eu sei, mas estou cansada. Parece que nunca sou suficiente. — Olhei para ele, à procura de compreensão. — Achas que estou a exagerar?
Ele hesitou. — Não sei… O Natal é importante para ela. Mas também devia ser para ti.
O resto do dia passou num clima estranho. Dona Lurdes cozinhava em silêncio, batendo panelas com mais força do que o necessário. O sogro, o Senhor António, tentava aliviar o ambiente com piadas secas, mas ninguém ria. Os cunhados chegaram ao fim da tarde, trazendo filhos barulhentos e prendas embrulhadas à pressa.
Durante o jantar, o bacalhau estava perfeito — claro, Dona Lurdes não admitiria menos. Mas o sabor era amargo para mim. Cada garfada parecia um lembrete do meu fracasso. A certa altura, a minha cunhada Sofia comentou:
— Este ano está mesmo bom, mãe. Inês, não fizeste tu?
Antes que eu respondesse, Dona Lurdes apressou-se: — Não, este ano achei melhor tratar eu do assunto. Assim ninguém se chateia.
Senti o rosto a arder de vergonha. O Rui apertou-me a mão debaixo da mesa, mas eu só queria desaparecer.
Depois do jantar, fui buscar um pouco de ar à varanda. O frio cortava, mas era melhor do que o calor sufocante da sala. A minha sobrinha Matilde veio ter comigo, encolhida no casaco.
— Estás triste, tia?
Sorri-lhe, tentando disfarçar. — Só estou cansada, querida.
Ela olhou para mim com aqueles olhos grandes e sérios. — A avó é muito mandona. A mãe diz que ela sempre foi assim.
Ri-me, surpreendida pela sinceridade da criança. — Pois é, às vezes é difícil agradar a toda a gente.
— Eu gosto de ti. Mesmo quando o arroz-doce fica estranho. — E abraçou-me com força.
Fiquei ali, com ela nos braços, a pensar em tudo o que tinha acontecido. Porque é que deixamos que as tradições nos afastem uns dos outros? Porque é que o Natal, que devia ser tempo de amor, se transforma tantas vezes numa prova de resistência?
Quando voltei para dentro, Dona Lurdes estava a arrumar a cozinha. Fui ajudá-la, em silêncio. Ela olhou para mim, os olhos cansados.
— Inês… Eu só quero que te sintas parte da família. Mas às vezes não sei como.
Fiquei sem palavras. Talvez ela também sentisse medo de perder o controlo, de perder o que sempre conheceu.
— Eu também quero pertencer, Dona Lurdes. Mas preciso de espaço para ser eu própria.
Ela assentiu, devagar. — Vamos tentar, está bem?
Naquela noite, deitada ao lado do Rui, pensei em tudo o que tinha acontecido. Talvez o mais difícil seja mesmo encontrar o equilíbrio entre tradição e mudança, entre querer agradar e ser fiel a nós próprios.
E vocês? Já sentiram que nunca são suficientes para a família do vosso companheiro? Como lidam com as tradições que vos sufocam? Será que algum dia conseguimos mesmo pertencer sem perder quem somos?