Quando a sala de aula se tornou um campo de batalha: O meu silêncio, a minha família e a busca por justiça

— Professora, posso ir à casa de banho? — perguntei, sentindo o suor frio escorrer-me pela testa. O barulho dos colegas era ensurdecedor, mas o meu corpo gritava ainda mais alto. As palavras saíram-me trémulas, quase inaudíveis, mas Dona Teresa nem sequer levantou os olhos do quadro.

— Agora não, Miguel. Espera pelo intervalo — respondeu ela, seca, como se eu fosse apenas mais um incómodo na sua rotina.

O chão parecia fugir-me dos pés. O cheiro a giz misturava-se com o perfume barato da professora e o odor agridoce das sandes de fiambre dos colegas. Senti as mãos a tremer e o estômago a dar voltas. Tentei concentrar-me na voz da professora, mas tudo se tornou um zumbido distante. O suor escorria-me pelas têmporas e as letras no quadro dançavam à minha frente.

— Professora, por favor… — insisti, quase num sussurro, mas ela já estava de costas para mim.

Foi então que tudo ficou preto. Senti o corpo a ceder e caí da cadeira, batendo com força no chão. Ouvi gritos abafados, cadeiras a arrastar-se, passos apressados. Quando abri os olhos, vi rostos desfocados à minha volta. A professora estava pálida, mas mantinha aquela expressão fria e distante.

— O que aconteceu? — perguntou alguém.

— Ele desmaiou! — gritou a Mariana, a minha colega da frente.

Dona Teresa aproximou-se finalmente, mas em vez de preocupação, vi irritação nos seus olhos.

— Miguel, levanta-te. Não faças uma cena — disse ela baixinho, como se eu fosse culpado por ter desmaiado.

Senti uma humilhação profunda. Os colegas cochichavam, alguns riam-se baixinho. Eu queria desaparecer. Quando finalmente consegui levantar-me, as pernas tremiam tanto que mal consegui chegar ao corredor. Ninguém me acompanhou à enfermaria. Ninguém ligou aos meus sinais de alerta.

Quando cheguei a casa nesse dia, o meu pai percebeu logo que algo estava errado. Ele estava sentado à mesa da cozinha, a corrigir uns papéis do trabalho.

— Miguel, o que se passa? Estás branco como a cal — disse ele, largando tudo para se aproximar de mim.

Desatei a chorar. Contei-lhe tudo: o desmaio, os pedidos ignorados, os risos dos colegas. O meu pai ficou em silêncio durante uns segundos. Depois levantou-se e disse:

— Isto não pode ficar assim. Amanhã vou falar com a escola.

A minha mãe, Ana, ouviu tudo da porta da cozinha. Ela era mais cautelosa.

— António, não vás arranjar problemas ao Miguel. Sabes como estas coisas são… — murmurou ela.

Mas o meu pai estava decidido. No dia seguinte, foi comigo à escola. Pediu para falar com a diretora, Dona Isabel. A conversa foi tensa desde o início.

— O seu filho tem tendência para exagerar — disse Dona Isabel, sem sequer olhar para mim.

— Exagerar? Ele desmaiou! E ninguém fez nada! — respondeu o meu pai, já com a voz alterada.

A diretora encolheu os ombros.

— Os professores têm muitos alunos para gerir. Não podem dar atenção especial a cada um.

Senti-me invisível. Como se fosse apenas um número numa lista interminável de problemas menores.

Nos dias seguintes, nada mudou. Os colegas continuaram a gozar comigo: “Olha o fraco!”, “Vais desmaiar outra vez?” Até os professores me olhavam de lado, como se eu fosse um fardo.

Em casa, os meus pais começaram a discutir cada vez mais sobre o assunto. A minha mãe queria proteger-me do escândalo; o meu pai queria justiça.

— Não podemos deixar isto passar! — gritava ele.

— E se depois fazem pior ao Miguel? — respondia ela, aflita.

Eu sentia-me preso entre os dois. Queria desaparecer. Comecei a fingir que estava doente para não ir à escola. Passei noites sem dormir, com medo do dia seguinte.

Uma noite ouvi os meus pais a discutir na sala:

— António, tu não percebes! Eu também fui humilhada na escola quando era miúda! Sei como isto acaba! — chorava a minha mãe.

— Mas não podemos aceitar que tratem o nosso filho assim! — insistia o meu pai.

No fundo, eu só queria ser ouvido. Queria que alguém acreditasse em mim sem me julgar ou minimizar o que sentia.

Um dia, o meu pai apareceu em casa com um papel na mão.

— Vou apresentar uma queixa formal ao Ministério da Educação — anunciou ele.

A minha mãe chorou ainda mais. Eu fiquei dividido entre o medo e uma esperança tímida de que algo mudasse.

A escola reagiu mal à queixa. A professora Dona Teresa começou a ignorar-me ainda mais nas aulas. Os colegas afastaram-se de mim como se eu fosse contagioso. Até alguns pais começaram a olhar para mim e para os meus pais com desconfiança à porta da escola.

Senti-me cada vez mais sozinho. Comecei a escrever num caderno tudo o que sentia: raiva, tristeza, vergonha. Era o único lugar onde podia ser sincero sem medo de represálias.

Um dia encontrei uma carta no meu cacifo: “Se fosses menos mariquinhas isto não acontecia.” As mãos tremeram-me tanto que deixei cair a carta no chão. Ninguém viu as lágrimas que me correram pela cara nesse momento.

O tempo passou devagar. A investigação do Ministério arrastava-se e nada parecia mudar. Em casa, os meus pais quase não falavam um com o outro. O silêncio era pesado como chumbo.

Até que um dia fui chamado ao gabinete da psicóloga da escola, Dona Filomena. Ela olhou-me nos olhos e disse:

— Miguel, queres contar-me o que sentes?

Desatei a chorar outra vez. Pela primeira vez senti que alguém realmente me ouvia sem julgar.

A partir daí comecei a ter sessões regulares com ela. Aos poucos fui recuperando alguma confiança em mim próprio. Mas as feridas ficaram.

A escola nunca assumiu responsabilidade pelo que aconteceu. A professora continuou lá como se nada tivesse passado. Os colegas cresceram e seguiram as suas vidas. Eu também cresci, mas nunca esqueci aquele dia em que fui tratado como invisível por quem devia proteger-me.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantos outros Miguéis existem por aí? Quantas vozes continuam silenciadas nas salas de aula deste país? Será que algum dia vamos aprender a ouvir verdadeiramente uns aos outros?