Quando a Porta se Fecha: O Domingo em que Deixei de Ser Bem-vinda
— Mãe, a Sofia pediu para não vires este domingo. — A voz do meu filho, Miguel, soou hesitante ao telefone, como se cada palavra lhe pesasse na boca. Fiquei em silêncio, com o coração a bater descompassado. O relógio da cozinha marcava 18h12, e eu estava a preparar o arroz doce para levar no domingo, como fazia há mais de vinte anos.
— Não queres que eu vá? — perguntei, tentando manter a voz firme, mas sentindo já o nó na garganta.
— Não é isso, mãe… Só este domingo. A Sofia está cansada, quer um dia só para nós e para as crianças. — Ele suspirou. — Não é nada contigo.
Nada comigo? Como podia não ser comigo? Desde que o Miguel casou com a Sofia, há sete anos, sempre fui eu quem organizava os almoços de domingo. A casa enchia-se de risos, cheiros de assado e conversas cruzadas. Era o meu momento, o meu papel. E agora… agora era dispensável.
Desliguei o telefone devagar. O arroz doce ficou ali, a arrefecer na bancada, esquecido. Sentei-me à mesa da cozinha e olhei para as mãos — mãos que embalaram o Miguel em noites de febre, que lhe fizeram os lanches para a escola, que lhe limparam as lágrimas quando caiu da bicicleta. Mãos que agora já não sabiam o que fazer.
Naquela noite quase não dormi. A cabeça girava num turbilhão de perguntas: O que fiz de errado? Será que me intrometi demasiado? Ou talvez não tenha feito o suficiente? Lembrei-me da última vez em que estive lá em casa — a Sofia parecia distante, respondia-me com monossílabos. O Miguel estava sempre ocupado com as crianças ou com o telemóvel. Senti-me invisível.
No domingo acordei cedo por hábito. O silêncio da casa era ensurdecedor. Olhei para a mesa posta para um e lembrei-me dos tempos em que éramos quatro: eu, o António, o Miguel e a Mariana. O António partiu há cinco anos — um enfarte fulminante levou-o numa manhã de janeiro. A Mariana vive em Londres; fala comigo pelo WhatsApp quando pode, mas raramente vem cá.
O telefone tocou às 11h30. Era a minha irmã, Teresa.
— Então, mana, já estás pronta para ir para casa do Miguel?
— Não vou hoje — respondi, tentando soar casual.
— Não vais? Mas porquê?
— A Sofia pediu… querem um domingo só deles.
Do outro lado ouvi um silêncio pesado.
— Olha… se quiseres vens almoçar cá a casa — disse ela por fim, com aquela voz doce de quem percebe mais do que diz.
Agradeci, mas recusei. Não queria ser peso morto na vida de ninguém.
Passei o resto do dia a olhar para o telemóvel, à espera de uma mensagem do Miguel. Nada. Nem uma foto dos netos, nem um simples “bom domingo”. Senti-me pequena, como uma criança esquecida no recreio.
À noite decidi ligar à Mariana.
— Mãe! Que surpresa! Está tudo bem?
— Está… está tudo — menti.
Mas ela percebeu logo pelo tom da minha voz.
— O que se passa?
Contei-lhe tudo. Ela ficou calada durante uns segundos.
— Mãe… às vezes as pessoas precisam de espaço. Talvez a Sofia esteja cansada…
— E eu? Eu também estou cansada! — explodi sem querer. — Cansada de ser sempre eu a ceder, a compreender! Nunca ninguém pergunta como estou eu!
Do outro lado ouvi um suspiro triste.
— Desculpa, mãe…
Desliguei e chorei baixinho. Senti-me egoísta por querer tanto estar presente na vida deles. Mas será egoísmo querer fazer parte da família que criei?
Os dias passaram devagar. No supermercado encontrei a Dona Amélia, vizinha do terceiro andar.
— Então, D. Lurdes, não foi ver os netos este fim-de-semana?
Sorri amarelo.
— Não deu desta vez…
Ela abanou a cabeça.
— Os tempos mudam… agora os filhos querem viver à maneira deles. A minha Ana também já não me liga nenhuma.
Senti um aperto no peito. Não era só comigo.
Na quarta-feira recebi uma mensagem do Miguel: “Mãe, desculpa por domingo. Podemos almoçar juntos esta semana?”
Respondi logo: “Claro! Diz tu o dia.” Mas ele só respondeu dois dias depois: “Sábado pode ser?”
Passei sexta-feira inteira a preparar tudo: fiz bacalhau à Brás (o prato preferido dele), comprei pão fresco e até um bolo de chocolate para os miúdos.
No sábado chegaram perto das 13h00. A Sofia entrou primeiro com os meninos pela mão. Sorriu-me de forma tensa.
— Olá, D. Lurdes…
O Miguel deu-me dois beijos apressados e foi logo ajudar as crianças a tirar os casacos.
Durante o almoço tentei puxar conversa:
— Então, Sofia, como vai o trabalho?
Ela encolheu os ombros.
— Vai-se andando… muito stress.
O Miguel olhava para o telemóvel de cinco em cinco minutos. Os miúdos estavam entretidos com os brinquedos novos que lhes comprei.
Quando chegou a sobremesa, arrisquei:
— Sabem… senti falta vossa no domingo passado.
A Sofia olhou para mim e depois para o Miguel. Ele limpou a boca com o guardanapo e disse:
— Mãe… precisamos de falar sobre isso.
O meu coração disparou.
— O que foi?
A Sofia respirou fundo:
— D. Lurdes… nós gostamos muito de si, mas às vezes sentimos que não temos espaço para sermos só nós os quatro. Os domingos acabam por ser sempre iguais…
Miguel interrompeu-a:
— Não é por mal, mãe! Só queremos variar um bocadinho… às vezes ir ao parque só nós ou ficar em casa sem planos.
Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos. Baixei-os para o prato vazio.
— Eu só queria ajudar… pensei que gostavam destes almoços.
A Sofia sorriu-me com pena:
— Gostamos… mas também precisamos do nosso tempo.
O resto do almoço foi silencioso. Quando se foram embora, fiquei sozinha na sala cheia de brinquedos espalhados e pratos por lavar.
Naquela noite escrevi uma carta ao António — sim, ao meu António lá do outro lado:
“Meu querido,
Hoje percebi que já não sou necessária como antes. O Miguel e a Sofia querem espaço e eu tenho de aprender a dar-lho sem me perder pelo caminho. Sinto tanto a tua falta nestes momentos…”
Guardei a carta na gaveta da mesa-de-cabeceira e chorei até adormecer.
Os domingos seguintes foram diferentes: comecei a ir à missa sozinha e depois tomava café com a Dona Amélia ou ia passear até ao jardim da cidade. Aos poucos fui percebendo que precisava de encontrar sentido fora dos almoços de família — mas ainda assim custava muito aceitar esta nova realidade.
Um dia encontrei o Miguel no supermercado.
— Mãe! Que sorte encontrar-te aqui!
Ele abraçou-me com força inesperada.
— Sabes… tenho saudades dos teus almoços — disse baixinho.
Sorri-lhe com ternura amarga:
— Quando quiseres sabes onde estou.
Ele assentiu e sorriu também — mas percebi que aquele tempo já não voltava atrás.
Agora escrevo estas palavras sentada à janela da sala, vendo as folhas caírem no jardim lá fora. Pergunto-me: será que todas as mães acabam por se tornar estranhas na vida dos filhos? Ou será apenas uma fase cruel da vida? E vocês — já sentiram este vazio dentro das vossas próprias casas?