Quando a Porta se Fecha: O Dia em que a Minha Sogra Quis Entrar
— Abre a porta, Mariana! Eu sei que estás aí! — A voz da minha sogra ecoava pelo corredor do prédio, carregada de impaciência e uma autoridade que nunca aceitei.
Por um segundo, hesitei. O meu filho, Tomás, olhava para mim com aqueles olhos grandes e assustados. O meu marido, Rui, estava no trabalho. Eu estava sozinha, com o coração aos pulos e uma raiva surda a crescer dentro do peito. Não era a primeira vez que ela aparecia sem avisar, mas hoje… hoje eu não ia ceder.
Apertei o intercomunicador com força.
— Dona Lurdes, não posso receber visitas agora. O Tomás está doente e eu preciso de descansar.
— Não digas disparates, menina! Sou tua família! — respondeu ela, já a subir o tom. — Abre a porta!
Senti o sangue ferver. Família? Desde o início do meu casamento com o Rui que a Dona Lurdes fazia questão de se intrometer em tudo: desde a cor das cortinas até à forma como eu cozinhava o arroz. Sempre com aquele ar de quem sabe tudo, de quem tem direito a tudo. Mas esta casa era o meu refúgio. O nosso refúgio.
O Tomás começou a tossir. Peguei nele ao colo e afastei-me da porta, tentando ignorar os murros insistentes.
— Mariana! — ouvi mais uma vez. — Isto é uma falta de respeito!
Fechei os olhos e respirei fundo. Lembrei-me da última discussão com o Rui sobre este assunto.
— Ela só quer ajudar — dizia ele, sempre a tentar apaziguar. — É a minha mãe…
— E eu sou tua mulher! — respondi-lhe, já exausta. — Preciso que me protejas também!
Mas Rui nunca soube dizer não à mãe. Cresceu numa aldeia pequena perto de Viseu, onde as famílias vivem todas juntas, onde as portas estão sempre abertas e as sogras entram sem bater. Eu cresci em Lisboa, filha única de pais divorciados, habituada ao silêncio e à privacidade. Para mim, cada visita inesperada era uma invasão.
O telefone tocou. Era ela, claro.
— Mariana, se não abres a porta agora, vou ligar ao Rui! — ameaçou.
— Faça como quiser — respondi, tentando manter a voz firme.
Desliguei e sentei-me no sofá com o Tomás ao colo. Ele aninhou-se em mim, febril e cansado. Senti-me culpada por ele estar no meio disto tudo. Mas também sabia que tinha de lhe mostrar que a nossa casa era um lugar seguro.
Passaram-se uns minutos até ouvir passos pesados a afastarem-se pelo corredor. Suspirei de alívio, mas sabia que aquilo não ia ficar por ali.
À noite, quando o Rui chegou, percebi logo pelo olhar dele que já sabia de tudo.
— A minha mãe ligou-me em lágrimas — disse ele, largando as chaves na mesa. — Disse que tu lhe fechaste a porta na cara…
Levantei-me devagar.
— Rui, ela não pode aparecer aqui quando lhe apetece. Eu avisei-te tantas vezes… Hoje o Tomás estava doente, eu estava exausta… Preciso do meu espaço!
Ele passou as mãos pelo cabelo, nervoso.
— Mas Mariana… é a minha mãe! Ela sente-se sozinha desde que o meu pai morreu…
— E eu? Não contas comigo? Não contas com o nosso filho? — A minha voz tremeu. — Porque é que os sentimentos dela valem mais do que os meus?
O silêncio caiu entre nós como uma pedra. O Tomás choramingou no quarto e fui ter com ele, deixando o Rui sozinho na sala.
Nessa noite quase não dormi. A cabeça cheia de perguntas: estaria eu a ser egoísta? Ou estaria finalmente a pôr limites? Lembrei-me da minha própria mãe, que raramente me visitava sem avisar e sempre respeitou o meu espaço. Porque é que para algumas pessoas isso era tão difícil?
No dia seguinte, acordei com uma mensagem da Dona Lurdes: “Espero que estejas satisfeita. O Rui ficou desfeito. Nunca pensei que fosses capaz disto.” Senti um aperto no peito. Não queria magoar ninguém, mas também não podia continuar a viver assim.
Durante dias, o ambiente em casa ficou pesado. O Rui falava pouco comigo e evitava olhar-me nos olhos. O Tomás sentia tudo e andava mais irrequieto do que nunca.
Uma tarde, decidi ir falar com a Dona Lurdes. Precisava de resolver aquilo cara a cara.
Toquei à campainha dela com as mãos suadas.
— Mariana? — abriu a porta com um ar desconfiado.
— Precisamos de conversar — disse-lhe, tentando sorrir.
Sentámo-nos na sala dela, rodeadas de fotografias antigas e móveis pesados cheios de memórias.
— Dona Lurdes… eu sei que gosta muito do Rui e do Tomás. Mas eu preciso do meu espaço. Preciso de saber que posso estar em casa sem medo de ser surpreendida…
Ela olhou para mim durante uns segundos longos demais.
— Eu só quero ajudar… Não quero ser um peso para ninguém.
— Eu sei… Mas às vezes ajudar é dar espaço também. Eu não sou sua filha, mas sou mãe do seu neto e mulher do seu filho. Preciso que confie em mim para cuidar deles.
Ela suspirou e baixou os olhos.
— O Rui sempre foi tudo para mim… Depois do pai dele morrer, fiquei tão sozinha…
Senti pena dela pela primeira vez. Vi ali uma mulher perdida entre o passado e o presente, agarrada ao filho como se fosse o último laço com a vida.
— Não quero afastá-la do Rui nem do Tomás — disse-lhe suavemente. — Só quero que respeite o nosso espaço. Podemos combinar visitas? Podemos encontrar-nos mais vezes fora de casa?
Ela assentiu devagar.
— Talvez tenhas razão… Só me custa aceitar que ele já não é só meu filho…
Saí dali mais leve, mas também mais triste. Percebi que todos estávamos a perder alguma coisa: ela perdia o filho para outra mulher; eu perdia a paz; o Rui perdia-se entre duas lealdades impossíveis.
Quando cheguei a casa, abracei o Tomás com força e sentei-me ao lado do Rui.
— Fui falar com a tua mãe — disse-lhe baixinho.
Ele olhou para mim surpreendido.
— E então?
— Acho que ela percebeu… Mas precisamos todos de mudar um bocadinho se queremos ser felizes nesta família.
Ele pegou na minha mão e ficámos ali em silêncio, finalmente juntos no mesmo lado da porta.
Às vezes pergunto-me: quantas famílias vivem presas entre portas fechadas e corações magoados? Será possível encontrar um equilíbrio entre amor e liberdade? Gostava tanto de saber como é nas vossas casas…