Quando a Porta se Fecha ao Domingo: O Silêncio de Uma Mãe
— Mãe, a Inês queria falar consigo… — disse o meu filho, Miguel, com aquele tom hesitante que só usa quando sabe que vem aí coisa difícil. Eu estava a mexer o arroz doce na cozinha, o cheiro da canela misturando-se com o do frango assado, como todos os domingos.
— O que foi, Miguel? — perguntei, tentando sorrir, mas já sentindo um aperto no peito.
Ele olhou para a Inês, minha nora, que baixou os olhos antes de falar:
— Dona Teresa… será que este domingo podia ser só nosso? Só eu, o Miguel e as meninas? — disse ela, quase num sussurro. — Precisamos de um domingo só para nós… para a nossa família.
A palavra “família” ficou a ecoar na minha cabeça como um trovão. Não era eu família? Não fui eu quem criou o Miguel, quem o ensinou a andar de bicicleta, quem ficou noites em claro quando ele tinha febre? Não fui eu quem lhe fez o primeiro arroz doce?
Fiquei ali parada, colher na mão, sentindo o calor do fogão e o frio dentro do peito. Lembrei-me de quando era pequena e a minha mãe me chamava para pôr a mesa ao domingo. O cheiro do caldo verde, as gargalhadas do meu pai, os primos todos à volta da mesa. Domingo era sagrado. Domingo era família.
— Claro, Inês… — consegui dizer, forçando um sorriso. — Compreendo. Vocês precisam do vosso espaço.
Miguel olhou para mim com culpa nos olhos. Quis abraçá-lo ali mesmo, mas ele desviou-se para ir buscar as meninas ao quarto. Fiquei sozinha na cozinha, o arroz doce a arrefecer e o frango a perder o cheiro.
Naquele domingo fui para casa mais cedo. O caminho parecia mais longo do que nunca. As ruas de Lisboa estavam vazias, como se toda a cidade soubesse que algo tinha mudado na minha vida.
Em casa, sentei-me no sofá e chorei em silêncio. O telefone não tocou. Ninguém perguntou se cheguei bem. Passei os olhos pelas fotografias na estante: Miguel em pequeno, de joelhos esfolados; Miguel no casamento com a Inês; as netas no batizado. Tantas memórias e agora… agora parecia que já não havia lugar para mim.
Na segunda-feira tentei ocupar-me: fui ao mercado da Dona Amélia, conversei com a vizinha do 3º esquerdo sobre as obras no prédio, mas tudo me parecia vazio. O silêncio da casa era ensurdecedor.
Na terça-feira liguei ao Miguel:
— Está tudo bem por aí?
— Está sim, mãe. As meninas estão na escola e a Inês foi trabalhar.
— E tu?
— Eu também… Olha mãe, depois ligo-te, está bem?
Desligou antes que eu pudesse perguntar se precisava de alguma coisa.
Na quarta-feira tentei ligar à Inês para saber das netas. Ela atendeu apressada:
— Teresa, agora não posso falar. Depois ligo.
Mas não ligou.
Na quinta-feira fui à igreja acender uma vela por todos nós. Sentei-me num banco e rezei para que Deus me desse força para aceitar esta nova realidade. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim: porque é que agora já não sou precisa? Porque é que as famílias mudam tanto?
No sábado à noite não consegui dormir. Fiquei a olhar para o teto escuro do quarto e a pensar em todas as vezes que pus os meus sonhos de lado para cuidar dos outros. Lembrei-me de quando o meu marido morreu e fiquei sozinha com o Miguel ainda pequeno. Trabalhei horas extra na fábrica de tecidos para lhe dar tudo o que podia. Nunca me queixei.
No domingo seguinte acordei cedo por hábito. Preparei o frango assado e o arroz doce como sempre. Mas desta vez não havia ninguém para comer comigo.
Às onze da manhã ouvi passos no corredor. O coração disparou: será que vieram? Mas era só a vizinha do lado a pedir açúcar.
Sentei-me à mesa sozinha. O silêncio era tão pesado que quase não conseguia respirar.
À tarde fui dar um passeio pelo Jardim da Estrela. Vi famílias inteiras sentadas na relva, crianças a correr atrás de pombos, avós a dar pão aos patos com os netos. Senti uma inveja amarga subir-me à garganta.
Quando voltei para casa encontrei uma mensagem no telemóvel:
“Mãe, desculpa não termos ido hoje. As meninas estavam cansadas e quisemos ficar por casa. Beijinhos.”
Respondi apenas: “Compreendo. Beijinhos para todos.” Mas não compreendia nada.
Os dias passaram assim: eu tentando ocupar-me com pequenas tarefas, esperando sempre uma chamada, um convite, um sinal de que ainda fazia parte da vida deles.
Uma tarde encontrei a Dona Lurdes no supermercado:
— Então Teresa, já não vai aos almoços de domingo?
Senti as lágrimas virem aos olhos:
— Parece que agora querem ficar só eles…
Ela abanou a cabeça:
— Os tempos mudam, minha querida. Os filhos crescem e esquecem-se das mães.
Mas eu não queria acreditar nisso. Não podia ser só isso.
Numa sexta-feira chuvosa decidi ir à escola buscar as netas sem avisar ninguém. Queria vê-las, abraçá-las, sentir que ainda era importante para alguém.
Quando cheguei ao portão vi a Inês ao longe, de mão dada com as meninas. Ela ficou surpreendida ao ver-me:
— Teresa? O que faz aqui?
— Vim buscar as meninas… pensei que podia levá-las ao parque.
Ela hesitou:
— Hoje não dá jeito… temos coisas combinadas.
As meninas correram para mim:
— Avó! Avó!
Abracei-as com força, sentindo o cheiro doce dos seus cabelos.
— Quando é que vens brincar connosco? — perguntou a mais nova.
Olhei para Inês à espera de resposta.
— Logo combinamos — disse ela secamente.
Fui para casa com o coração apertado. Pela primeira vez senti raiva da Inês. Senti raiva do Miguel por não me defender, por não perceber o quanto me magoava este afastamento.
Nessa noite escrevi uma carta ao Miguel:
“Meu filho,
Sei que tens a tua vida e respeito isso. Mas custa-me sentir que já não faço parte dela como antes. Sempre tentei ser uma boa mãe e uma boa avó. Se fiz algo de errado, diz-me. Só queria poder continuar a partilhar convosco os domingos e as pequenas coisas da vida.
Com amor,
Mãe”
Esperei dias por resposta. Ele ligou finalmente numa terça-feira à noite:
— Mãe… recebi a tua carta. Não é nada contigo… Só precisamos de tempo para nós também…
— Mas eu sinto-me tão sozinha, Miguel…
Ele ficou em silêncio do outro lado da linha.
— Eu sei mãe… desculpa…
Desliguei sentindo-me ainda mais vazia.
Agora os domingos são meus outra vez, mas já não têm sabor a frango assado nem cheiro a canela. São dias longos e silenciosos em que me pergunto onde foi que me perdi nesta história toda.
Será assim que acaba o papel de mãe? Quando é que deixamos de ser necessárias? Será egoísmo querer continuar a fazer parte da vida dos nossos filhos?