Quando a Minha Sogra Tomou Conta da Minha Casa: Entre o Amor e a Perda de Si

— Não é assim que se faz, Mariana! — gritou a minha sogra da cozinha, enquanto eu tentava preparar o jantar. O cheiro do refogado misturava-se ao da tensão, e as paredes pareciam encolher à minha volta. Era a terceira vez naquela semana que ela corrigia a forma como eu cortava as cebolas. — Na minha casa sempre se fez assim, e nunca ninguém reclamou!

Respirei fundo, tentando não responder. A minha filha, Leonor, olhava-me com olhos grandes, percebendo mais do que eu gostaria. O meu marido, Rui, fingia ler o jornal na sala, mas eu sabia que ouvia cada palavra. Desde que a mãe dele se mudara para nossa casa, depois do divórcio com o meu sogro, nada era igual. O nosso lar, antes um refúgio de risos e pequenas rotinas, transformara-se num campo de batalha silencioso.

No início, achei que era o certo. Ela estava sozinha, magoada, e Rui pediu-me com aquele olhar de menino perdido: — Mariana, ela não tem para onde ir. Só até se recompor…

Aceitei. Afinal, família é para isso mesmo, não é? Mas ninguém me avisou que abrir a porta era também abrir mão do meu espaço, dos meus hábitos, da minha paz.

— Mariana, não te esqueças de pôr menos sal! — insistiu ela, agora mais perto de mim. Senti o seu perfume forte, misturado com o cheiro do creme das mãos. — O Rui sempre teve problemas de estômago.

Mordi o lábio. Eu sabia disso. Eu cuidava dele há dez anos. Mas agora parecia que tudo o que fazia era insuficiente.

À noite, na cama, tentei falar com Rui:

— Não aguento mais… Ela não me deixa respirar.

Ele suspirou, virando-se para o lado:

— Mariana, ela está frágil. É só uma fase.

Mas as fases podem durar uma vida inteira.

Os dias passaram e a casa deixou de ser minha. A sala encheu-se de bibelôs antigos e fotografias do casamento dela com o meu sogro — ironia das ironias. A cozinha ganhou novos panos de renda e um relógio de parede que fazia tic-tac alto demais para os meus nervos.

Comecei a chegar mais tarde do trabalho. Preferia enfrentar o trânsito do que os olhares críticos da minha sogra. Leonor também mudou: já não me contava os segredos da escola; preferia brincar no quarto com a avó.

Uma noite, ouvi-as a rir alto. Fui espreitar e vi-as sentadas no chão, rodeadas de bonecas. Senti ciúmes da minha própria filha. Senti-me egoísta por isso.

No domingo seguinte, durante o almoço, a discussão rebentou:

— Mariana, não achas que devias passar mais tempo com a Leonor? — perguntou ela, com aquele tom doce que só serve para disfarçar veneno.

— Faço o melhor que posso! — respondi, a voz a tremer.

Rui tentou intervir:

— Por favor…

Mas eu já não conseguia parar:

— Esta casa já não é minha! Não posso respirar sem ser julgada!

A minha sogra levantou-se da mesa:

— Se é assim que te sentes, talvez seja melhor eu ir embora!

O silêncio caiu pesado. Leonor começou a chorar. Rui olhou-me como se eu fosse uma estranha.

Nessa noite dormi no sofá. O cheiro do perfume dela impregnava tudo: as almofadas, as cortinas, até os meus sonhos.

Na segunda-feira seguinte fui trabalhar mais cedo do que nunca. No escritório, a minha colega Inês percebeu logo:

— Estás péssima…

Desabei em lágrimas na casa de banho. Contei-lhe tudo: o sufoco, a culpa, o medo de perder Rui e Leonor.

— Tens de falar com ele — disse ela. — Ou vais perder-te de ti mesma.

Voltei para casa decidida a pôr um ponto final naquela tortura. Encontrei Rui na varanda:

— Não aguento mais — disse-lhe. — Ou ela encontra outro sítio para viver ou eu vou-me embora.

Ele ficou em silêncio muito tempo. Depois chorou como nunca o vi chorar.

— Não quero escolher entre ti e a minha mãe…

— Mas já escolheste — respondi baixinho.

Naquela noite dormimos juntos mas separados por um abismo invisível.

Nos dias seguintes tentei evitar conflitos. A minha sogra também parecia mais calada. Mas as pequenas guerras continuavam: um comentário aqui, uma crítica ali. Até Leonor começou a perguntar porque é que eu estava sempre triste.

Foi então que recebi uma mensagem do meu pai: “A tua mãe está pior.”

O mundo desabou outra vez. Fui vê-la ao hospital e percebi como é frágil a vida. Senti saudades da infância, dos domingos em família sem dramas nem máscaras.

Quando voltei para casa encontrei Leonor à porta:

— Mãe, porque é que ninguém aqui está feliz?

Abracei-a com força. Chorei tudo o que tinha guardado durante meses.

Nessa noite sentei-me com Rui e a sogra na sala:

— Isto não pode continuar assim — disse eu. — Estamos todos infelizes.

A minha sogra olhou-me nos olhos pela primeira vez em muito tempo:

— Também não quero ser um peso… Mas tenho medo de ficar sozinha.

Vi ali uma mulher assustada, não uma inimiga.

Propus-lhe ajudar a procurar um apartamento perto de nós. Rui apoiou-me finalmente. Demorou semanas até encontrarmos algo adequado e até ela aceitar sair.

No dia em que fez as malas senti alívio… mas também tristeza. Leonor chorou muito; eu chorei com ela.

A casa ficou vazia durante dias. O silêncio era estranho mas reconfortante.

Com o tempo voltámos a encontrar-nos como família: eu, Rui e Leonor. A sogra vinha jantar aos domingos e tudo parecia mais leve.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes sacrificamos quem somos por amor? E será possível amar sem perdermos o nosso lugar no mundo?