Quando a Minha Sogra Se Tornou o Centro do Meu Mundo: Entre o Dever e a Liberdade
— Mariana, já viste que o jantar ainda não está pronto? — A voz da D. Amélia ecoou pela casa, cortando o silêncio pesado da cozinha. O relógio marcava sete e meia, e eu ainda estava a tentar acabar um relatório do trabalho, sentada à mesa com o portátil aberto e os olhos cansados. Senti o sangue ferver-me nas veias, mas respirei fundo. Não era a primeira vez que ela me apressava, nem seria a última.
“Será que algum dia esta casa volta a ser minha?”, pensei, enquanto me levantava devagar. Desde que a minha sogra veio viver connosco, há seis meses, tudo mudou. O Rui, meu marido, dizia que era só até ela recuperar da operação ao joelho, mas os dias foram passando e a presença dela tornou-se permanente. No início, tentei ser compreensiva. Afinal, ela não tinha mais ninguém. Mas ninguém me perguntou se eu estava preparada para abdicar da minha liberdade.
— Mariana, querida, não te importas de pôr mais sal na sopa? — pediu ela, sentada à mesa com as pernas esticadas e um olhar crítico sobre tudo o que eu fazia.
— Claro, D. Amélia — respondi, forçando um sorriso. Por dentro, sentia-me a desmoronar.
O Rui chegava sempre tarde do trabalho. Quando chegava, limitava-se a dar um beijo rápido na mãe e outro em mim, antes de se sentar no sofá com o telemóvel. As conversas entre nós tornaram-se monossilábicas. Eu sentia falta do Rui de antes — aquele que me fazia rir, que me surpreendia com flores ao sábado de manhã, que me ouvia quando eu precisava de desabafar.
Uma noite, depois de mais uma discussão silenciosa à mesa do jantar — D. Amélia a criticar a forma como eu cortava os legumes, o Rui absorto no telemóvel — fui para a varanda chorar em silêncio. Oiço passos atrás de mim.
— Mariana… — Era o Rui. — O que se passa contigo ultimamente?
Olhei para ele, incrédula.
— O que se passa comigo? Rui, tu não vês? Desde que a tua mãe veio para cá, eu deixei de existir nesta casa! Não tenho um minuto para mim! Nem para nós!
Ele suspirou.
— Mariana, ela precisa de nós agora. Não podemos deixá-la sozinha.
— E eu? Eu não preciso de ti? Não preciso de espaço?
Ele desviou o olhar. Senti-me sozinha como nunca.
Os dias seguintes foram iguais: trabalho, casa, cuidados à sogra, críticas veladas. Comecei a sentir-me invisível. A minha mãe ligava-me todos os domingos:
— Filha, estás bem? Pareces cansada…
— Estou só um bocadinho em baixo, mãe. Mas vai passar.
Não queria preocupar ninguém. Mas dentro de mim crescia uma revolta silenciosa.
Uma tarde, cheguei a casa mais cedo e encontrei D. Amélia no meu quarto, a remexer nas gavetas.
— D. Amélia! O que está a fazer?
Ela olhou-me com ar inocente.
— Estava só a ver se tinhas roupa para passar a ferro…
Senti uma raiva surda. Aquilo já não era só falta de privacidade — era invasão.
Nessa noite, esperei que o Rui chegasse e sentei-me com ele na sala.
— Rui, precisamos mesmo de conversar. Eu não aguento mais assim. Sinto-me uma estranha na minha própria casa.
Ele olhou-me com ar cansado.
— Mariana… Eu sei que não é fácil. Mas ela é minha mãe…
— E eu sou tua mulher! Não podes continuar a fingir que isto é normal! Eu preciso de ti! Preciso de espaço!
Ele ficou em silêncio. Pela primeira vez vi lágrimas nos olhos dele.
— Eu sinto-me preso entre vocês as duas… Não sei o que fazer…
Ficámos ali sentados em silêncio. Pela primeira vez em meses senti que ele me ouvia realmente.
Nos dias seguintes tentei impor pequenos limites: fechei a porta do quarto à chave; comecei a sair para caminhar sozinha ao fim da tarde; pedi ao Rui para ajudar mais nas tarefas da casa. Mas cada pequena vitória vinha acompanhada de olhares magoados da sogra e silêncios pesados à mesa.
Uma noite ouvi-a ao telefone com uma amiga:
— Esta rapariga não tem jeito nenhum para dona de casa… O meu filho merecia melhor…
Chorei baixinho no banho. Senti-me insuficiente em todos os papéis: mulher, nora, profissional.
No trabalho comecei a falhar prazos. A minha chefe chamou-me:
— Mariana, está tudo bem? Precisas de uns dias?
Pensei em pedir férias mas sabia que em casa não teria descanso.
O Rui começou a chegar ainda mais tarde. Um dia perguntei-lhe:
— Rui… Ainda gostas de mim?
Ele olhou-me nos olhos:
— Gosto… Mas sinto-me esgotado.
Eu também.
Certa manhã acordei com dores no peito e falta de ar. Fui ao hospital — ataque de ansiedade, disseram-me. O médico perguntou:
— Tem tido muito stress?
Sorri tristemente.
Quando voltei para casa, D. Amélia estava sentada na sala com ar preocupado.
— Mariana… Estás pálida. O que se passa?
Pela primeira vez em meses fui sincera:
— Estou cansada, D. Amélia. Sinto-me sufocada nesta casa.
Ela ficou calada durante uns segundos longos demais.
— Eu também não queria ser um peso… Mas tenho medo de ficar sozinha…
Olhei para ela e vi uma mulher assustada por trás da máscara de autoridade. Pela primeira vez senti compaixão.
Nessa noite sentei-me com o Rui e sugeri procurarmos uma solução juntos: talvez uma cuidadora durante o dia; talvez procurar um lar onde ela pudesse ter companhia e cuidados adequados.
Foi uma conversa difícil — cheia de lágrimas e culpas — mas pela primeira vez senti esperança.
Hoje escrevo esta história ainda sem final feliz definido. A D. Amélia está numa residência durante o dia e volta para casa à noite; eu voltei a ter algum tempo para mim; o Rui e eu estamos a tentar reconstruir-nos aos poucos.
Pergunto-me muitas vezes: quantas mulheres portuguesas vivem presas entre o dever e o desejo de liberdade? Quantas se calam por medo de magoar quem amam? E será possível encontrar equilíbrio sem nos perdermos pelo caminho?