Quando a Minha Sogra Quis Mandar no Meu Natal: O Ano em que Disse Basta ao Bacalhau
— Mariana, este ano não quero desculpas. O bacalhau é contigo, mas vou ficar aqui ao teu lado para garantir que não estragas tudo como no ano passado — disse a Dona Emília, com aquele tom que só ela sabe usar, entre o paternalismo e a ameaça velada.
Senti o sangue a ferver-me nas veias. Estávamos na cozinha da casa dela, em Odivelas, e o cheiro a cebola refogada já enchia o ar. O relógio marcava dez da manhã da véspera de Natal e eu já estava exausta. O ano anterior ainda me assombrava: o bacalhau ficou seco, as batatas meio cruas, e nunca mais ouvi o fim da história. A Dona Emília fez questão de contar a toda a família — e até à vizinha do terceiro esquerdo — como eu tinha “assassinado” o prato mais sagrado do Natal português.
— Dona Emília, eu acho que este ano podíamos variar… Talvez um polvo à lagareiro? — arrisquei, tentando manter a voz firme.
Ela olhou para mim como se eu tivesse sugerido servir hambúrgueres congelados.
— Mariana, por amor de Deus! Natal sem bacalhau? O que é que vem a seguir? Trocar o presépio por um Pai Natal de plástico?
O meu marido, Rui, entrou na cozinha nesse momento, atraído pelo cheiro ou talvez pelo tom elevado das nossas vozes. Olhou de uma para a outra, hesitante.
— Mãe, Mariana… Por favor, não comecem — pediu ele, mas já era tarde demais.
A minha sogra virou-se para ele:
— Rui, explica à tua mulher que há tradições que não se mexem! No meu tempo, ninguém fazia estas figuras. A tua avó ficava horas na cozinha e nunca se queixava!
Senti uma lágrima ameaçar cair. Não era só o bacalhau. Era tudo: as comparações constantes com a mãe dele, as críticas veladas à forma como educo os meus filhos, até à maneira como dobro os guardanapos. Senti-me pequena, esmagada por aquela mulher que parecia dominar tudo à sua volta.
— Eu não sou a tua mãe, Rui — disse-lhe baixinho. — E não quero passar mais um Natal a sentir-me uma intrusa nesta casa.
O silêncio caiu pesado. O meu filho mais velho, Tiago, apareceu à porta da cozinha com o tablet na mão.
— Mãe, posso jogar mais um bocadinho?
Olhei para ele e sorri, tentando esconder as lágrimas.
— Podes, filho. Vai lá.
A Dona Emília bufou.
— No meu tempo as crianças ajudavam na cozinha! Agora é só ecrãs e birras…
O Rui tentou aliviar o ambiente:
— Mãe, deixa lá o miúdo. Mariana, queres ajuda?
— Não quero ajuda nenhuma! — explodi finalmente. — Estou farta! Todos os anos é a mesma coisa. Nunca está nada bem. Se faço como tu queres, criticas porque não faço igual à tua mãe. Se tento inovar, sou uma herege! Eu não sou menos mãe ou menos mulher por não saber fazer bacalhau como tu queres!
A Dona Emília ficou vermelha. Por um momento achei que ia gritar comigo ou atirar-me com uma colher de pau. Mas limitou-se a cruzar os braços e a olhar para mim com aquele ar magoado que me fazia sentir ainda pior.
— Mariana… Eu só quero manter as tradições da família. Não percebes?
— E eu só quero sentir que pertenço a esta família! — respondi-lhe, já sem conseguir conter as lágrimas.
O Rui abraçou-me. Senti-me ridícula por chorar ali à frente deles, mas também aliviada por finalmente dizer o que me ia na alma há anos.
O resto do dia foi tenso. A Dona Emília fechou-se no quarto “para descansar” e eu fiquei sozinha na cozinha com o Rui e os miúdos. Fizemos polvo à lagareiro como eu queria e até os miúdos ajudaram a descascar batatas. Rimos, ouvimos música de Natal e pela primeira vez senti-me em casa naquela casa.
À noite, quando nos sentámos à mesa, a Dona Emília apareceu finalmente. Olhou para o prato de polvo com desdém mas acabou por comer em silêncio. No fim do jantar, levantou-se e foi buscar uma caixa antiga ao armário da sala.
— Isto era da minha mãe — disse ela, abrindo a caixa e mostrando um conjunto de talheres antigos. — Ela também não sabia fazer bacalhau quando casou com o meu pai. Aprendeu com o tempo… E eu fui muito dura contigo este tempo todo. Desculpa.
Fiquei sem palavras. Pela primeira vez vi fragilidade naquela mulher que sempre me pareceu inabalável.
— Obrigada, Dona Emília — disse-lhe baixinho. — Eu só queria sentir que faço parte…
Ela sorriu-me pela primeira vez em muito tempo.
— Já fazes parte há muito tempo, Mariana. Eu é que demorei a perceber.
Naquela noite dormi em paz pela primeira vez em muitos Natais. Percebi que às vezes é preciso dizer basta para sermos ouvidos — mesmo que doa.
Agora pergunto-me: quantas vezes nos calamos só para evitar conflitos? E será que vale mesmo a pena sacrificar quem somos só para agradar aos outros? Gostava de saber como lidam vocês com as vossas sogras…