Quando a Minha Sogra Me Trouxe um Balde de Pepinos Passados: Um Verão à Sombra das Comparações Familiares

— São para ti, Mariana. — A voz da minha sogra, Dona Lurdes, ecoou no corredor abafado do prédio enquanto me estendia um balde pesado. O cheiro intenso de pepino maduro subiu-me ao nariz antes sequer de olhar para dentro. Eram enormes, alguns já amarelados, a pele grossa e enrugada. — Para fazer sopa ou qualquer coisa — acrescentou, sem sorrir.

Atrás dela, a Inês, minha cunhada, segurava um saco transparente cheio de pepinos pequenos, verdes e perfeitos. — Estes são ótimos para picles! — disse Dona Lurdes, com um brilho de orgulho nos olhos. Inês sorriu-lhe de volta, cúmplice.

Fiquei ali parada, o balde a pesar-me nos braços e no peito. Senti o rubor subir-me à cara. — Obrigada… — murmurei, mas a palavra saiu-me seca, quase inaudível.

Assim começou aquele verão. Um verão em que cada gesto parecia uma comparação, cada conversa uma competição velada. O meu marido, Rui, nunca percebia nada. — Estás a exagerar — dizia-me quando lhe contei o que sentira naquele momento. — São só pepinos, Mariana.

Mas não eram só pepinos. Eram anos de pequenas preferências, de elogios sussurrados à Inês na mesa do almoço de domingo: “A Inês faz sempre o arroz tão soltinho”, “A Inês nunca se esquece do aniversário do tio António”, “A Inês tem sempre a casa tão arrumada”. Eu era a que trabalhava demais, que chegava tarde aos jantares de família porque ficava presa no trânsito vindo do hospital. A que esquecia datas porque estava exausta depois de noites sem dormir.

Naquela noite, sentei-me à mesa da cozinha com o balde entre as pernas. Peguei num dos pepinos e tentei cortá-lo. A faca escorregou na polpa mole. Senti as lágrimas a arderem-me nos olhos. “O que é que eu estou a fazer?”, pensei. “Porque é que isto me dói tanto?”

No dia seguinte, fui trabalhar com os olhos inchados. A minha colega Sofia percebeu logo. — O Rui fez-te alguma coisa? — perguntou baixinho no vestiário.

— Não… quer dizer, não foi ele. Foi a mãe dele…

— Outra vez? — Sofia abanou a cabeça. — Mariana, tu tens de te impor.

Mas como é que se impõe alguém à sogra? Em Portugal, as sogras são rainhas silenciosas das famílias. Ninguém lhes diz nada de frente. Tudo se resolve em olhares e silêncios pesados.

No domingo seguinte, o almoço foi em nossa casa. Fui buscar pão fresco à padaria e comprei flores para pôr na mesa. Queria mostrar que também sabia receber. Dona Lurdes chegou cedo com um tabuleiro de bacalhau com natas (“Porque nunca se sabe se tens tempo para cozinhar”) e um saco com mais legumes do quintal.

— Trouxe-te uns tomates para fazer salada — disse-me, sem olhar para mim.

— Obrigada — respondi, tentando sorrir.

Durante o almoço, Inês contou que ia passar férias ao Algarve com o namorado novo. Dona Lurdes suspirou: — Que sorte! Eu nunca tive férias dessas…

— A Mariana também precisa de férias — disse Rui, finalmente tentando defender-me.

— Pois precisa… mas ela trabalha tanto…

Senti o olhar dela pousar em mim como uma acusação disfarçada de preocupação.

Depois do almoço, enquanto arrumava a cozinha sozinha (Inês foi fumar com Rui à varanda), Dona Lurdes entrou em silêncio e começou a lavar os pratos ao meu lado.

— Sabes… eu só quero ajudar — disse ela de repente.

— Eu sei — respondi, mas a voz saiu-me trémula.

Ela olhou para mim por fim. — Não penses que gosto mais da Inês do que de ti. Ela é diferente… tu és diferente…

— Às vezes parece que não sou suficiente — confessei num sussurro.

Ela ficou calada um instante. Depois pousou um prato na banca e secou as mãos no avental.

— Quando casei com o pai do Rui, a minha sogra também me fazia sentir assim. Nunca estava bom o suficiente…

Olhei-a surpreendida. Nunca tinha ouvido Dona Lurdes falar da própria sogra.

— E como é que lidou com isso?

Ela encolheu os ombros. — Aguentei. Mas tu não tens de aguentar tudo sozinha.

Nesse momento ouvi Inês rir-se alto na varanda e senti uma pontada de inveja misturada com alívio. Talvez Dona Lurdes não fosse tão insensível quanto eu pensava. Talvez ela própria estivesse presa num papel antigo, repetindo gestos que aprendera sem querer.

Naquela noite sonhei com pepinos gigantes a invadirem a minha casa, tapando todas as portas e janelas. Acordei suada e cansada.

Na semana seguinte decidi fazer picles com os pepinos passados. Procurei receitas antigas da minha avó e passei uma tarde inteira na cozinha, cortando, fervendo vinagre, enchendo frascos.

Quando os servi num jantar com amigos, todos elogiaram: — Que delícia! Nunca provei picles assim!

Senti um orgulho estranho e inesperado. Talvez pudesse transformar aquilo que me magoava em algo bom.

No domingo seguinte levei um frasco para Dona Lurdes.

— Fiz picles dos pepinos que me deu — disse-lhe.

Ela provou um pedaço e sorriu: — Estão melhores do que os meus.

Inês olhou para mim e piscou-me o olho: — Vês? Só tu para fazeres isto!

Pela primeira vez em muito tempo senti-me parte daquela família sem precisar de competir ou provar nada a ninguém.

Agora olho para trás e pergunto-me: quantas vezes deixamos que pequenos gestos nos definam? E se aprendêssemos a transformar as sobras da vida em algo novo? O que fariam vocês no meu lugar?