Quando a Minha Sogra Entrou Pela Porta: A Batalha Pelo Meu Lar e Pelo Meu Coração
— Catarina, precisamos de falar. — A voz do Rui, o meu marido, soava tensa, quase como se tivesse medo da minha resposta. Eu estava a preparar o jantar, cortando cebolas com uma força que não sabia que tinha. O cheiro picava-me os olhos, mas era só uma desculpa para as lágrimas que ameaçavam cair.
— O que foi agora? — perguntei, sem olhar para ele. Já sabia que vinha aí mais uma conversa difícil. Desde que a Dona Lurdes se mudara para cá, há três semanas, parecia que vivíamos todos em cima de um barril de pólvora.
Ele hesitou. — A minha mãe… ela… Bem, ela acha que devíamos mudar algumas coisas cá em casa. Diz que o quarto dela é pequeno e que talvez os miúdos pudessem partilhar o quarto para ela ficar mais confortável.
Senti o sangue gelar-me nas veias. — O quê? O quarto das crianças é o único espaço deles! Já lhes tirámos tanto…
O Rui passou a mão pelo cabelo, nervoso. — Catarina, ela está habituada a ter o seu espaço. E sabes como ela é…
Sabia. Sabia demasiado bem. Dona Lurdes era daquelas mulheres portuguesas de antigamente: dura, teimosa, convencida de que só ela sabia o que era melhor para todos. Quando decidiu dar o apartamento à filha mais nova, a Tânia — “porque ela precisa mais do que eu”, disse — ninguém questionou. Mas quando anunciou que vinha viver connosco “por uns tempos”, senti logo um aperto no peito.
No início tentei ser compreensiva. Afinal, era mãe do meu marido, avó dos meus filhos. Mas rapidamente percebi que a casa já não era minha. As panelas passaram a ser dela, as regras também. Os meus filhos começaram a perguntar se podiam ver televisão na sala — “A avó não gosta de barulho”, diziam eles, com os olhos baixos.
Nessa noite, depois do jantar, sentei-me na varanda com um copo de vinho barato. O Rui ficou na sala com a mãe, a ver o telejornal. Ouvi-os discutir baixinho sobre as contas da casa.
Lembrei-me do tempo em que éramos só nós dois. Quando comprámos este T3 em Almada, sonhámos com uma vida simples: trabalho, filhos, jantares de domingo com amigos. Nunca imaginei que teria de lutar pelo direito de estar à vontade na minha própria casa.
No dia seguinte, Dona Lurdes entrou na cozinha enquanto eu preparava as lancheiras das crianças.
— Catarina, querida, pus as tuas panelas no armário de cima. Assim não me atrapalham quando faço o almoço.
Sorri amarelo. — Claro, Dona Lurdes.
Ela olhou-me de cima a baixo. — Sabes, eu sempre fiz questão de manter tudo arrumado. Não leves a mal, mas esta cozinha precisava mesmo de uma mão feminina.
Mordi o lábio até quase sangrar. Quis responder-lhe que aquela cozinha era minha há dez anos, mas calei-me. Não queria discutir à frente dos miúdos.
As semanas passaram e as coisas só pioraram. O Rui começou a chegar mais tarde do trabalho. As crianças estavam cada vez mais caladas. Uma noite ouvi o Pedro, o mais velho, sussurrar à irmã:
— Achas que a avó vai ficar cá para sempre?
A Maria encolheu os ombros. — Não sei… Mas tenho saudades de brincar no nosso quarto.
O coração apertou-se-me no peito. Senti-me impotente e culpada por não conseguir proteger os meus filhos daquele ambiente pesado.
Uma sexta-feira à noite, depois de mais uma discussão sobre quem usava mais água no banho (“Os miúdos gastam litros! No meu tempo era só um balde!”), fechei-me na casa de banho e chorei como há muito não chorava.
No sábado seguinte, decidi falar com o Rui.
— Isto não pode continuar assim — disse-lhe, enquanto ele fingia ler o jornal na sala.
Ele suspirou. — Catarina… é a minha mãe. Não posso pô-la na rua.
— E nós? Vais pôr-nos na rua? Porque é isso que parece! Esta casa já não é nossa!
Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez em semanas. Vi ali um homem cansado, dividido entre duas mulheres importantes na sua vida.
— Eu sei… Mas ela não tem para onde ir agora. A Tânia ainda está a arranjar o apartamento…
— A Tânia?! — explodi. — Ela é solteira! Podia perfeitamente ficar com a mãe por uns meses! Porquê sempre nós?
Ele encolheu os ombros. — A minha mãe acha que tu és mais responsável…
Ri-me com amargura. — Pois claro. Responsável para cuidar dela enquanto todos fogem às responsabilidades!
Nesse dia decidi procurar ajuda. Falei com a minha irmã, a Joana.
— Catarina, tens de impor limites — disse ela ao telefone. — Se não fores tu a defender o teu espaço, ninguém vai fazê-lo por ti.
Mas como impor limites sem destruir a família? Como dizer ao Rui que estava a sufocar? Como explicar aos meus filhos que nem sempre podemos escolher quem vive connosco?
No domingo seguinte, durante o almoço (bacalhau à Brás feito pela Dona Lurdes), tentei puxar conversa:
— Dona Lurdes, já pensou em procurar um apartamento pequeno aqui perto? Assim podia visitar-nos sempre que quisesse…
Ela olhou-me como se eu tivesse sugerido mandá-la para um lar.
— Eu? Sozinha? Já basta ter dado tudo à Tânia! Agora querem livrar-se de mim?
O Rui ficou calado. Os miúdos baixaram os olhos para o prato.
Senti-me horrível por magoá-la, mas também por não conseguir defender os meus próprios limites.
As semanas seguintes foram um desfile de pequenas guerras: quem escolhia o canal da televisão; quem decidia o jantar; quem tinha direito ao silêncio depois das nove da noite; quem podia convidar amigos para casa (ninguém). Comecei a sentir-me uma estranha dentro das minhas próprias paredes.
Uma noite acordei sobressaltada com vozes na sala. Era Dona Lurdes ao telefone com a Tânia:
— Aqui ninguém me quer! Só me aturam porque têm medo do que vão dizer os vizinhos! A Catarina faz tudo para me pôr fora daqui!
No dia seguinte confrontei o Rui:
— Isto não pode continuar assim! Ou encontramos uma solução ou… ou eu vou embora!
Ele ficou pálido. — Vais deixar-me?
— Não quero… Mas também não quero perder-me nesta casa onde já não sou feliz!
Foi preciso chegar ao limite para ele perceber a gravidade da situação. Finalmente falou com a irmã e juntos arranjaram maneira de acelerar as obras no apartamento da Tânia.
Duas semanas depois, Dona Lurdes anunciou que ia mudar-se para casa da filha “por uns tempos”. No dia em que saiu, senti um alívio tão grande que chorei de felicidade e culpa ao mesmo tempo.
O Rui abraçou-me na cozinha.
— Desculpa… Nunca pensei que fosse tão difícil.
Olhei-o nos olhos e vi ali o homem por quem me apaixonei: vulnerável, imperfeito, mas disposto a lutar por nós.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas famílias vivem esta guerra silenciosa dentro das suas casas? Quantas mulheres se calam para não magoar ninguém — até se magoarem a si próprias? Será possível amar sem perdermos quem somos?