Quando a Minha Prima se Mudou: Entre Segredos, Conflitos e o Preço da Família
— Mariana, já chegaste? — perguntei, tentando esconder o cansaço na voz enquanto largava as chaves em cima da mesa da entrada. O relógio marcava quase dez da noite e o cheiro a comida requentada pairava no ar. Não obtive resposta. O silêncio do apartamento era pesado, quase sufocante, como se já antecipasse a tempestade que se aproximava.
A verdade é que nunca fui de grandes aventuras. Sempre preferi a segurança da rotina, o conforto de saber quanto dinheiro tinha na conta ao fim do mês. Quando a Mariana, a minha prima de infância, me pediu para ficar comigo em Lisboa enquanto procurava emprego, achei que seria uma boa ideia. “Vai ser divertido!”, disse ela, com aquele sorriso largo que sempre me fez sentir pequena ao seu lado. Eu, a certinha, a poupada, e ela, a impulsiva, a que vivia cada dia como se fosse o último.
No início, até foi. Ríamos das nossas diferenças, partilhávamos histórias antigas, cozinhávamos juntas. Mas bastaram algumas semanas para perceber que a convivência diária era outra coisa. Mariana era desorganizada, deixava roupa espalhada pela casa, esquecia-se de pagar a sua parte das contas. Eu tentava não dizer nada, mas cada vez que via a pilha de louça na pia ou a luz do corredor acesa durante horas, sentia uma raiva surda a crescer dentro de mim.
Uma noite, depois de mais um jantar em silêncio, decidi falar.
— Mariana, precisamos de conversar. — A minha voz saiu mais dura do que queria.
Ela olhou para mim, olhos grandes, cansados.
— O que foi agora, Sofia?
— Não é “agora”. É sempre. Não pagaste a tua parte da renda este mês. E as contas estão a acumular-se. Eu não consigo continuar assim.
Ela suspirou, desviando o olhar.
— Estou à procura de trabalho, sabes disso. Não é fácil. Não tens um pouco de paciência?
— Paciência? — Senti o sangue ferver. — Mariana, eu também tenho contas para pagar! Não posso sustentar as duas!
O silêncio caiu entre nós como uma sentença. Ela levantou-se, pegou no casaco e saiu sem dizer mais nada. Fiquei ali, sozinha, a olhar para a porta fechada, com o coração aos pulos e as mãos a tremer.
Nessa noite, não dormi. Fiquei a pensar em tudo o que tinha feito por ela — as vezes que a defendi perante a família, os conselhos, o ombro amigo. E agora, sentia-me traída. No dia seguinte, tentei ligar-lhe, mas não atendeu. Passaram-se dois dias até que voltou, com os olhos inchados e um ar derrotado.
— Desculpa, Sofia. — murmurou, sentando-se no sofá. — Fui egoísta. Não queria que as coisas chegassem a este ponto.
Quis abraçá-la, mas algo me impediu. Havia uma distância nova entre nós, feita de palavras não ditas e mágoas acumuladas.
Os dias seguintes foram estranhos. Mariana arranjava pequenos trabalhos — babysitting, servir às mesas — mas o dinheiro nunca era suficiente. Eu sentia-me cada vez mais sobrecarregada, mas não conseguia expulsá-la. Afinal, era família. E, no fundo, ainda me lembrava das tardes de verão na casa dos avós, das brincadeiras no quintal, das promessas de que estaríamos sempre lá uma para a outra.
Mas a tensão não parava de crescer. Começámos a discutir por tudo e por nada: o lixo por tirar, o leite acabado, o barulho à noite. Uma manhã, encontrei a minha carteira remexida. Faltavam vinte euros. O coração gelou-me no peito. Confrontei-a, a voz a tremer entre raiva e medo.
— Mariana, foste tu?
Ela não respondeu. Limitou-se a olhar para o chão, envergonhada.
— Precisei de comprar comida. Ia devolver-te…
Senti uma mistura de pena e fúria. Como é que tínhamos chegado ali?
A partir desse dia, a confiança desapareceu. Comecei a esconder o dinheiro, a trancar o quarto. Mariana tornou-se mais distante, saía cedo e voltava tarde. Os jantares juntas acabaram. A casa, antes cheia de risos, tornou-se fria, quase hostil.
A família começou a perguntar. A minha mãe ligava todos os dias, preocupada. “A tua prima está bem?” “Vocês estão a dar-se bem?” Eu mentia, dizia que sim, que era só o stress do trabalho. Mas por dentro sentia-me sozinha, traída, exausta.
Um domingo, durante o almoço de família, a verdade veio ao de cima. A tia Lurdes, mãe da Mariana, perguntou-lhe diretamente:
— Então, filha, já arranjaste trabalho?
Mariana baixou os olhos. Eu senti todos os olhares em cima de mim. O silêncio era insuportável.
— Ainda não, mãe. Mas a Sofia tem sido uma grande ajuda.
A tia Lurdes sorriu para mim, mas eu só queria desaparecer. Senti-me usada, como se toda a responsabilidade fosse minha. Depois do almoço, a Mariana puxou-me para o lado.
— Desculpa pôr-te nesta posição. Sei que não tens culpa.
— Não é só isso, Mariana. Eu já não aguento mais. Preciso do meu espaço, da minha paz. Não posso continuar assim.
Ela assentiu, lágrimas nos olhos.
— Vou procurar outro sítio. Não quero estragar a nossa relação.
Naquela noite, chorei. Chorei pela infância perdida, pela amizade desfeita, pela família que já não reconhecia. Quando a Mariana saiu, dias depois, a casa ficou mais vazia do que nunca. Mas, pela primeira vez em meses, dormi em paz.
Hoje, olho para trás e pergunto-me: vale a pena sacrificar o nosso bem-estar pelo bem da família? Até onde devemos ir para ajudar quem amamos? E será que alguma vez conseguimos realmente recuperar o que se perde quando a confiança se quebra?
Às vezes dou por mim a pensar se fiz o certo. E vocês, o que fariam no meu lugar?