Quando a Minha Nora Virou o Meu Mundo do Avesso: O Preço de Uma Casa e de Um Filho
— Mãe, não percebes mesmo, pois não? — A voz do Rui ecoou pela sala, carregada de uma raiva que eu nunca lhe conhecera. — Só pensas em ti! Sempre foi assim!
Fiquei ali, parada junto à janela da sala, as mãos trémulas a apertar o pano da cortina. O sol de inverno entrava tímido, mas eu só sentia frio. O Rui, o meu único filho, aquele a quem dediquei toda a minha vida, agora olhava para mim como se eu fosse uma estranha.
— Rui, por favor… — tentei, mas ele virou-me as costas. A Andreia, sentada no sofá, cruzou os braços e lançou-me um olhar vitorioso. Desde que ela entrou na nossa vida, tudo mudou. O Rui já não vinha jantar comigo às sextas-feiras, já não me ligava só para saber se eu estava bem. Agora era ela quem decidia tudo.
A discussão começou por causa da casa. A minha casa. A casa onde o Rui cresceu, onde o pai dele — o meu António — pintou as paredes do quarto dele de azul claro quando nasceu. Agora, eles queriam trocar de casa comigo. Diziam que o apartamento deles era pequeno demais para a família que queriam construir. Que eu, sozinha, não precisava de tanto espaço.
— Não é justo! — gritou a Andreia naquela manhã, quando vieram cá falar comigo. — A minha mãe já dizia: quem não pensa nos filhos, acaba sozinha.
Essas palavras ficaram-me gravadas na pele como uma queimadura. Eu sempre pensei no Rui. Sempre! Depois da morte do António, foi ele quem me deu forças para continuar. Trabalhei anos na escola primária de São João para lhe pagar a universidade. Fui mãe e pai, amiga e confidente. E agora… agora era isto?
— Mãe, tu tens de perceber — insistiu o Rui, mais calmo mas com os olhos vermelhos — que eu e a Andreia precisamos desta casa. Tu podes viver perfeitamente no nosso apartamento. É mais pequeno, mas é confortável.
— E os meus móveis? E as minhas memórias? — perguntei, sentindo a voz embargar-se.
A Andreia bufou.
— Memórias não pagam contas nem criam filhos.
Olhei para o Rui à espera de um gesto de compaixão, mas ele desviou o olhar. Senti-me a afundar num poço sem fundo.
Os dias seguintes foram um tormento. O telefone tocava menos. As visitas rarearam. Quando vinham, era só para insistir no mesmo assunto. A vizinha D. Emília reparou na minha tristeza e perguntou-me se estava tudo bem.
— O Rui quer que eu troque de casa com ele… — confessei-lhe num sussurro.
Ela abanou a cabeça.
— Os filhos hoje em dia só pensam neles próprios…
Mas eu sabia que o Rui não era assim. Ou pelo menos não era antes da Andreia.
Uma tarde, fui ao cemitério falar com o António. Sentei-me junto à campa dele e chorei baixinho.
— António… o que é que eu faço? Se cedo, perco tudo o que construímos juntos. Se não cedo… perco o nosso filho.
O vento frio trouxe-me uma sensação de vazio ainda maior.
No domingo seguinte, eles voltaram cá a casa. Desta vez vieram com papéis na mão.
— Mãe — disse o Rui — trouxemos um contrato para facilitar as coisas. Assim fica tudo legalizado e ninguém sai prejudicado.
— Não quero assinar nada — respondi firme.
A Andreia levantou-se num salto.
— Tu és egoísta! Só pensas em ti! O Rui merece melhor!
O Rui ficou calado. Vi-lhe as mãos a tremerem como as minhas.
Depois disso, passaram semanas sem me falarem. O silêncio era pior do que qualquer discussão. Comecei a duvidar de mim própria: estaria mesmo a ser egoísta? Não seria mais fácil ceder e garantir que o Rui era feliz?
Mas depois olhava à minha volta: as fotografias na parede, o cheiro do café pela manhã, o jardim onde plantei roseiras com o António… Como podia abandonar tudo isso?
Uma noite, acordei sobressaltada com um pesadelo: via-me sozinha num apartamento frio e vazio, sem ninguém para me visitar. O Rui passava por mim na rua e nem me reconhecia.
No dia seguinte, decidi ir ter com eles ao apartamento deles em Benfica. Levei um bolo de laranja como fazia antigamente.
A Andreia abriu a porta e olhou-me com desconfiança.
— Vim falar convosco — disse-lhe.
O Rui apareceu à porta da sala, surpreendido.
— Mãe…
Sentei-me à mesa com eles e tentei explicar:
— Eu compreendo que precisem de mais espaço. Mas esta casa é tudo o que me resta do vosso pai… Não posso simplesmente trocá-la por outra qualquer.
A Andreia revirou os olhos.
— Então preferes perder o teu filho?
O Rui olhou para mim com lágrimas nos olhos.
— Mãe… eu amo-te. Mas preciso de construir a minha família também…
Senti um nó na garganta.
— E eu? Não sou família?
O silêncio caiu sobre nós como uma pedra pesada.
Voltei para casa sozinha naquela noite. Senti-me mais velha do que nunca. Passei horas a olhar para as fotografias antigas: o Rui bebé no colo do António; os natais felizes; os aniversários cheios de risos.
Na semana seguinte, recebi uma carta do advogado deles: se não aceitasse a troca amigavelmente, iam avançar para tribunal para tentar declarar-me incapaz de gerir os meus bens por causa da idade e da solidão.
Foi como levar um murro no estômago. O meu próprio filho…
Procurei ajuda junto da D. Emília e do padre Manuel da paróquia. Ambos me disseram para não ceder à chantagem emocional.
— A casa é tua por direito — disse-me o padre Manuel — e ninguém te pode obrigar a nada.
Mas as noites continuavam longas e solitárias. Comecei a pensar se valeria mesmo a pena lutar tanto por paredes e telhados quando estava prestes a perder o coração do meu filho.
Um dia, ao regressar das compras, encontrei o Rui à porta de casa. Estava sozinho e parecia mais magro.
— Mãe… desculpa — murmurou ele, com lágrimas nos olhos — Eu deixei-me levar pela Andreia… Ela está grávida e eu só queria fazer tudo certo… Mas isto está a destruir-nos.
Abracei-o com força, sentindo finalmente um pouco do meu filho de volta.
— O importante és tu, Rui… Sempre foste tu.
Ele chorou no meu ombro como quando era pequeno e caía da bicicleta.
No fim desse dia percebi que nada é mais valioso do que o amor verdadeiro entre mãe e filho. Mas também aprendi que há lutas que temos de travar sozinhas — mesmo quando dói mais do que qualquer outra coisa no mundo.
Agora pergunto-me: quantas mães terão passado pelo mesmo? Quantas terão sido julgadas por protegerem aquilo que construíram com tanto sacrifício? Será egoísmo querer guardar as memórias ou será apenas amor? E vocês… até onde iriam por um filho?