Quando a Minha Mãe Virou as Costas: A Luta de Uma Mãe Solteira em Lisboa
— Não me peças mais isso, Ana! Eu já te disse que não posso ficar com os miúdos todos os dias! — gritou a minha mãe, batendo com força a chávena na mesa da cozinha.
Senti o peito apertar, como se cada palavra dela fosse um prego cravado na minha pele. Olhei para os meus filhos, sentados no sofá da sala, olhos grandes e atentos, como se percebessem tudo o que se passava. O mais novo, o Tomás, só tinha três anos. A Leonor já ia nos sete e o Diogo, com dez, tentava sempre ser o forte da família desde que o pai morreu.
A morte do Rui foi como um terramoto. Uma manhã ele saiu para trabalhar na Carris e nunca mais voltou. Um acidente estúpido na Segunda Circular. Lembro-me do polícia à porta, do cheiro a café queimado e do silêncio que se abateu sobre a casa. Desde esse dia, tudo mudou. Passei a ser mãe e pai, a cozinheira, a enfermeira, a professora e a única fonte de rendimentos.
— Mãe, eu só preciso que fiques com eles até às seis. O meu turno no supermercado acaba às cinco e meia. Não tenho ninguém… — implorei, sentindo as lágrimas ameaçarem cair.
Ela desviou o olhar. — Eu já criei os meus filhos. Agora quero descansar. Não posso viver para ti, Ana.
Aquelas palavras ecoaram na minha cabeça durante dias. Senti-me sozinha como nunca. Lisboa parecia-me maior, mais fria, mais hostil. Os vizinhos olhavam com pena, mas ninguém se oferecia para ajudar. O dinheiro mal dava para pagar a renda do T2 em Chelas. Às vezes faltava para a luz ou para o gás. O frigorífico parecia sempre vazio.
Uma noite, depois de deitar os miúdos, sentei-me no chão da cozinha e chorei baixinho. Senti raiva da minha mãe, do Rui por me ter deixado tão cedo, de mim própria por não conseguir dar conta de tudo. Mas no dia seguinte acordava cedo, punha um sorriso forçado e fazia torradas com manteiga para os miúdos.
O Diogo começou a ter problemas na escola. Chamaram-me à reunião com a professora.
— A Ana tem feito os trabalhos de casa? — perguntou ela.
— Tem tentado… — respondi, sem coragem de explicar que muitas vezes adormecia antes de conseguir ajudá-lo.
A professora suspirou. — Ele está muito distraído. E parece triste.
Senti um nó na garganta. Como explicar que a tristeza era uma sombra que pairava sobre todos nós?
As discussões com a minha mãe tornaram-se rotina. Ela dizia que eu era ingrata, que não valorizava o que ela já tinha feito por mim. Eu gritava que precisava dela agora mais do que nunca. Uma vez cheguei a atirar-lhe:
— Se fosses tu no meu lugar, eu nunca te deixava assim!
Ela ficou em silêncio, olhos marejados. Mas não cedeu.
Comecei a procurar alternativas: pedi à vizinha do lado para ficar com os miúdos uma hora por dia — ela aceitou, mas só quando podia. Inscrevi-me numa lista para apoio social da Junta de Freguesia, mas disseram-me que havia muitas famílias à espera.
No supermercado onde trabalhava, as colegas cochichavam quando eu chegava atrasada ou tinha de sair mais cedo porque algum dos miúdos estava doente.
— A Ana vive sempre aflita… — ouvi uma vez a Carla dizer à Sandra.
Fingi que não ouvi. Mas cada comentário era mais um peso nos ombros.
Houve dias em que pensei em desistir. Em deixar os miúdos com o pai do Rui em Setúbal e fugir para qualquer lado onde ninguém me conhecesse. Mas depois olhava para eles — para o sorriso da Leonor quando lhe lia histórias ao deitar, para o Tomás a pedir colo, para o Diogo a tentar ser corajoso — e sabia que não podia.
Um sábado à tarde, depois de mais uma discussão com a minha mãe ao telefone, sentei-me no banco do jardim em frente ao prédio e desabafei com a Dona Emília, uma senhora idosa que costumava dar pão aos pombos.
— Sabe, Dona Emília… às vezes sinto que estou sozinha no mundo.
Ela pousou a mão enrugada sobre a minha.
— Filha, ser mãe é carregar o mundo às costas sem ninguém ver. Mas também é encontrar força onde pensavas não ter nenhuma.
As palavras dela ficaram comigo durante dias.
Comecei a juntar moedas para comprar um bolo pequeno no aniversário do Diogo. Convidei dois amigos dele da escola e fizemos uma festa simples em casa. Pela primeira vez em meses ouvi gargalhadas verdadeiras naquela sala pequena e desarrumada.
À noite, quando todos dormiam, sentei-me na cama e escrevi uma carta à minha mãe:
“Mãe,
Sei que estás cansada e que já fizeste muito por mim. Mas preciso de ti agora como nunca precisei antes. Não te peço todos os dias — só quando não tenho mesmo alternativa. Os teus netos sentem a tua falta. Eu também.”
No dia seguinte ela apareceu lá em casa com um saco de laranjas e pão fresco.
— Hoje fico eu com eles — disse apenas.
Não falámos sobre o passado nem sobre as discussões. Só nos abraçámos em silêncio.
A vida não ficou mais fácil depois disso. Continuo a lutar todos os dias: contas para pagar, trabalhos precários, noites mal dormidas e aquele medo constante de falhar como mãe. Mas aprendi que pedir ajuda não é sinal de fraqueza — é sinal de amor pelos meus filhos e por mim própria.
Às vezes ainda me pergunto: será que algum dia vou conseguir dar-lhes tudo aquilo que merecem? Ou será que esta luta constante é tudo o que lhes posso oferecer? E vocês… já se sentiram assim perdidos dentro da vossa própria família?