Quando a Minha Filha se Esqueceu de Mim: Um Grito Silencioso de uma Mãe Portuguesa

— Mãe, podes transferir-me cinquenta euros? Preciso mesmo, é urgente.

A voz da Mariana ecoa pelo telefone, apressada, quase impaciente. Nem um “olá”, nem um “como estás?”. Apenas o pedido, seco, como se eu fosse um multibanco com pernas. Sinto o peito apertar-se, como se cada palavra dela fosse um prego a cravar-se no meu coração. Respiro fundo, tentando não deixar transparecer a mágoa.

— Claro, filha. Mas está tudo bem? Precisas de alguma coisa além disso?

Do outro lado, silêncio. Ouço o som de vozes ao fundo, risos abafados, talvez colegas da faculdade. Mariana suspira, como se a minha preocupação fosse um incómodo.

— Está tudo bem, mãe. Só preciso do dinheiro, está bem? Tenho de ir, depois ligo.

A chamada termina antes que eu possa dizer mais alguma coisa. Fico a olhar para o ecrã do telemóvel, o nome dela ainda brilhando, como uma ferida aberta. Lembro-me de quando ela era pequena, de como corria para mim com os braços abertos, chamando-me de “mamã” com aquela voz doce. Agora, parece que só existo quando há contas para pagar ou problemas para resolver.

O meu marido, António, entra na sala e percebe o meu ar abatido.

— Foi a Mariana outra vez?

Assinto, tentando conter as lágrimas. Ele senta-se ao meu lado, pousando a mão sobre a minha.

— Ela está a crescer, Maria. É normal afastar-se um pouco.

— Não é só isso, António. Sinto que já não faço parte da vida dela. Só me procura quando precisa de dinheiro. Nem sequer pergunta como estou. — A minha voz treme, e finalmente as lágrimas caem.

António suspira, olhando para o chão. Também ele sente a ausência da filha, mas tenta ser forte por mim. No fundo, sei que o magoa tanto quanto a mim.

Lembro-me de todas as noites em que ficava acordada à espera que Mariana chegasse a casa, já adolescente, preocupada com as más companhias, com as saídas até tarde. Sempre fui uma mãe presente, talvez até demasiado. Será que a protegi demais? Será que lhe dei tudo tão facilmente que agora ela acha que é obrigação minha resolver-lhe a vida?

No dia seguinte, vou ao banco e faço a transferência. Mando-lhe uma mensagem: “Já está, filha. Se precisares de falar, estou aqui.” Não recebo resposta.

Os dias passam, e o silêncio dela pesa mais do que qualquer palavra. Tento ocupar-me com as tarefas de casa, com o trabalho no supermercado, mas a cabeça está sempre nela. Vejo mães com filhas pequenas a fazer compras, a rir, a discutir sobre que bolachas levar. Sinto uma pontada de inveja, misturada com saudade.

Uma tarde, ao sair do trabalho, encontro a minha vizinha, Dona Emília, no elevador. Ela sorri, sempre simpática.

— Então, Maria, como vai a Mariana? Já não a vejo há tanto tempo!

Sorrio, forçada.

— Está bem, está na faculdade. Anda muito ocupada.

Dona Emília abana a cabeça, compreensiva.

— Os filhos crescem e esquecem-se de nós. O meu Rui só me liga no Natal e nos anos. Mas é a vida, minha querida. Temos de aceitar.

Aceitar. Será mesmo esse o caminho? Aceitar que a minha filha, a quem dei tudo, agora me vê apenas como um recurso? Não consigo.

Nessa noite, António sugere que convidemos Mariana para jantar ao fim de semana.

— Talvez precise de um empurrãozinho para voltar a casa. — diz ele, tentando animar-me.

Ligo-lhe, o coração aos pulos. Ela atende ao fim de vários toques.

— Olá, mãe. O que foi agora?

— Mariana, queria convidar-te para jantar cá em casa no sábado. Fazes-nos falta.

Ela hesita.

— Não sei se posso, tenho coisas combinadas com amigos. Mas vejo se consigo.

No sábado, preparo o seu prato preferido: bacalhau com natas. António ajuda-me a pôr a mesa, e até compramos um bolo de chocolate, como fazíamos nos aniversários dela. O relógio avança, e cada minuto parece uma eternidade. Às nove da noite, recebo uma mensagem: “Desculpa, mãe. Não vou conseguir ir. Fica para outra altura.”

Sento-me à mesa, o prato dela vazio à minha frente. António tenta disfarçar a desilusão, mas vejo-lhe nos olhos a mesma tristeza que sinto. Jantamos em silêncio, o bolo intocado.

Os dias tornam-se semanas. Mariana liga apenas para pedir dinheiro ou resolver burocracias. Um dia, recebo uma chamada do banco: ela está com o cartão bloqueado por excesso de levantamentos. Sinto-me dividida entre a vontade de ajudar e a necessidade de lhe impor limites.

Quando ela liga novamente, decido ser firme.

— Mariana, precisamos de conversar. Não posso continuar a resolver tudo por ti. Tens de aprender a gerir o teu dinheiro.

Ela explode do outro lado.

— Sempre a mesma conversa! Achas que é fácil? A faculdade, as despesas… Nunca percebes nada! Só sabes criticar!

— Não é isso, filha. Só quero ajudar-te a crescer, a seres independente.

— Se é para isto, mais vale não ligar! — grita, e desliga.

Fico a olhar para o telefone, as mãos a tremer. António abraça-me, mas sinto-me sozinha como nunca.

Naquela noite, não consigo dormir. Revivo cada momento da infância dela: os primeiros passos, as noites de febre, as festas de aniversário. Onde foi que perdi a minha filha? Será que fui demasiado exigente? Ou demasiado permissiva?

No trabalho, começo a distrair-me, a cometer erros. A gerente chama-me à atenção.

— Maria, está tudo bem? Tem andado muito ausente.

Baixo os olhos, envergonhada.

— Desculpe, Dona Teresa. São coisas de família.

Ela sorri, compreensiva.

— Se precisar de falar, estou aqui. Às vezes faz bem desabafar.

Mas não consigo. Sinto vergonha de admitir que a minha filha me rejeita. Que falhei como mãe.

Um dia, ao arrumar o quarto da Mariana — ainda cheio de peluches e livros antigos — encontro um caderno de desenhos dela, da infância. Folheio as páginas: há retratos nossos, abraçadas, sorrisos desenhados com lápis de cor. As lágrimas caem sem controlo. Sento-me na cama dela e choro como há muito não chorava.

António entra e senta-se ao meu lado.

— Maria, não podemos obrigá-la a ser como era antes. Mas também não podemos deixar que ela nos trate assim. Temos de encontrar um equilíbrio.

— E se ela nunca voltar? E se me esquecer para sempre?

Ele aperta-me a mão.

— Ela é nossa filha. Vai perceber um dia o valor da família.

Os meses passam. Mariana liga cada vez menos. No Natal, aparece em casa com pressa, troca meia dúzia de palavras e vai embora antes da sobremesa. O vazio que deixa é maior do que a sua ausência física.

No Ano Novo, decido escrever-lhe uma carta. Não um pedido de dinheiro ou um convite para jantar. Apenas uma carta de mãe para filha.

“Minha querida Mariana,

Sinto a tua falta todos os dias. Não pelo dinheiro, nem pelas tarefas que te fazia. Sinto falta da tua presença, do teu riso, das nossas conversas. Sei que estás a crescer e a descobrir o teu caminho, mas queria que soubesses que estarei sempre aqui para ti — não só como apoio financeiro, mas como mãe, amiga e confidente. Espero que um dia possas olhar para mim não como uma obrigação, mas como alguém que te ama incondicionalmente.

Com amor,
Mãe”

Envio a carta pelo correio, à moda antiga. Não recebo resposta. Mas sinto-me mais leve, como se tivesse finalmente dito o que precisava.

Hoje, continuo à espera de Mariana. Às vezes penso em ligar-lhe, mas resisto à tentação de ser sempre eu a dar o primeiro passo. Tento reconstruir a minha vida: inscrevi-me num curso de costura, comecei a sair mais com amigas. António e eu redescobrimos pequenos prazeres juntos: passeios à beira-mar, idas ao cinema.

Mas a saudade nunca desaparece. Cada vez que o telefone toca, o coração salta — será ela? Queria tanto voltar a ouvir um “olá, mãe” cheio de carinho, como antigamente.

Pergunto-me: será que todas as mães passam por isto? Será que um dia Mariana vai perceber tudo o que fiz por ela? Ou será que o amor de mãe é mesmo feito para ser silencioso, invisível — só sentido quando já não está lá?

E vocês, já sentiram este vazio? O que fariam no meu lugar?