Quando a Minha Filha Quis Mandar-me para uma Garçonnière: O Preço de Ser Mãe
— Mãe, precisamos falar — disse a Inês, com aquela voz que só usava quando vinha aí problema. Estava sentada à mesa da cozinha, as mãos cruzadas, o olhar fixo na chávena de chá que já arrefecera. O relógio marcava quase nove da noite, e eu já sentia o cansaço dos meus setenta e dois anos pesar-me nos ossos. — O que foi agora, filha? — perguntei, tentando soar calma, mas o coração já me batia mais depressa.
Ela respirou fundo, como se estivesse prestes a anunciar uma sentença. — Estive a pensar… Este apartamento é muito grande para ti sozinha. Três quartos, duas casas de banho… Não achas que seria melhor mudares-te para um sítio mais pequeno? Uma garçonnière, por exemplo. Eu podia tratar de tudo, arrendar este apartamento e com o dinheiro podias viver muito melhor.
Por um momento, não consegui responder. Senti-me como se tivesse levado um murro no estômago. O nosso T3 em Benfica não era apenas um apartamento; era o lugar onde vivi quarenta anos com o António, onde vi a Inês dar os primeiros passos, onde chorei e ri, onde me tornei quem sou. E agora… agora era só um bem imobiliário para ela?
— Queres mandar-me embora da minha própria casa? — perguntei, a voz a tremer.
— Não é isso, mãe! — apressou-se ela. — Só quero o melhor para ti. Lá estarias mais confortável, menos preocupada com as limpezas…
— E tu? O que ganhas com isso? — interrompi, mais dura do que queria.
Ela corou, desviando o olhar. — O dinheiro do arrendamento ajudava muito… Sabes como está difícil pagar a prestação do meu apartamento. E o Tomás precisa de explicações de matemática…
O silêncio caiu entre nós como uma cortina pesada. Senti-me pequena, dispensável. Lembrei-me da última vez que chorei assim: foi no funeral do António. Agora chorava por mim mesma.
Nos dias seguintes, a proposta da Inês tornou-se um fantasma que me perseguia pela casa. Cada objeto parecia sussurrar memórias: o quadro do corredor que comprámos na Feira da Ladra, o tapete gasto da sala onde o António adorava dormir a sesta, as marcas de altura da Inês na ombreira da porta do quarto dela. Como podia deixar tudo isto para trás?
A minha irmã Teresa veio visitar-me nesse fim de semana. Mal entrou, percebeu que algo não estava bem.
— O que se passa, Maria? Pareces um fantasma.
Contei-lhe tudo entre lágrimas. Ela ficou em silêncio durante uns segundos e depois disse:
— Não deixes que te empurrem para fora da tua vida. Já deste tudo à Inês. Agora tens de pensar em ti.
Mas como pensar em mim quando toda a minha vida foi pensar nos outros? Fui mãe solteira durante anos até conhecer o António. Trabalhei como professora primária até à reforma. Sempre pus a família em primeiro lugar.
Na semana seguinte, a Inês voltou à carga.
— Mãe, já vi umas garçonnières giríssimas em Alvalade. Uma delas até tem varanda! — dizia ela ao telefone, entusiasmada como se estivesse a falar de férias.
— Não quero sair daqui — respondi seca.
— Mas mãe…
— Já chega! — gritei sem querer. — Esta casa é minha! Não sou um móvel velho para despachares!
Do outro lado da linha ouvi um soluço abafado. Senti-me horrível por magoá-la, mas também aliviada por finalmente dizer o que me ia na alma.
Nos dias seguintes, quase não dormi. A culpa corroía-me: estaria a ser egoísta? Ou seria ela? Lembrei-me de todas as vezes em que pus os sonhos dela à frente dos meus. Quando quis estudar Belas-Artes e eu insisti para ir para Direito porque “dava mais futuro”. Quando quis ir viver com o namorado aos vinte anos e eu fiz chantagem emocional para ficar mais tempo em casa.
Talvez agora fosse ela a tentar controlar a minha vida…
O Tomás, meu neto de dez anos, veio passar o sábado comigo. Enquanto jogávamos dominó na sala, olhou para mim com aqueles olhos grandes e sérios:
— Avó, porque estás triste?
Sorri-lhe e disse que era só cansaço. Mas ele não se deixou enganar.
— A mãe disse que vais mudar de casa. Não quero que vás embora.
Abracei-o com força e senti as lágrimas ameaçarem cair outra vez.
No domingo seguinte houve almoço de família. A tensão era palpável à mesa. O meu genro tentava puxar conversa sobre futebol; a Inês mexia no telemóvel; o Tomás olhava para mim em silêncio.
No fim do almoço levantei-me e disse:
— Tenho uma coisa para dizer. Não vou sair daqui. Esta casa é minha e aqui vivi toda a minha vida adulta. Se algum dia não conseguir cuidar de mim sozinha, logo se vê. Mas enquanto puder subir estas escadas e fazer o meu café todas as manhãs nesta cozinha, não vou a lado nenhum.
A Inês ficou vermelha e saiu da sala sem dizer palavra. O meu genro encolheu os ombros e foi atrás dela. Fiquei sozinha com o Tomás, que me deu um beijo na testa.
Naquela noite recebi uma mensagem da Inês: “Desculpa mãe. Só queria ajudar… Mas percebo-te.” Não respondi logo. Fiquei horas a olhar para as paredes do meu quarto, ouvindo os sons familiares do prédio: o vizinho do lado a ver novelas alto demais; o elevador antigo a ranger; os miúdos do terceiro andar a correr pelo corredor.
No dia seguinte fui ao café da esquina tomar o pequeno-almoço como sempre fazia com o António aos domingos. A dona Rosa perguntou:
— Então Maria, está tudo bem?
Sorri-lhe e disse:
— Está tudo como tem de estar.
Ao regressar a casa senti uma paz estranha. Talvez tivesse perdido alguma coisa na relação com a minha filha; talvez nunca voltasse a ser igual. Mas ganhei outra coisa: o direito de decidir sobre a minha própria vida.
Agora pergunto-me: quantas mães e pais passam pelo mesmo? Quantos são tratados como fardos quando já deram tudo? Será egoísmo querer ficar no lugar onde fomos felizes? Ou será apenas dignidade?