Quando a Minha Filha Escolheu Outro Caminho: Entre o Amor e a Solidão
— Mãe, não posso agora. Estou mesmo cheia de coisas para fazer. — A voz da Inês, do outro lado da linha, soou apressada, quase impaciente. Oiço um riso abafado ao fundo, talvez do Miguel, o marido dela. — Depois ligo-te, está bem?
Fiquei a olhar para o telemóvel, o ecrã já escuro. O silêncio da casa parecia maior do que nunca. O relógio marcava 19h12. O jantar estava quase pronto, mas já não fazia sentido pôr dois pratos na mesa. Desde que a Inês casou, há seis meses, as nossas conversas tornaram-se cada vez mais curtas, mais espaçadas. Antes, ligava-me todos os dias, às vezes só para contar como tinha corrido o trabalho ou para perguntar se eu precisava de alguma coisa do supermercado. Agora, sinto-me como uma peça de mobiliário antigo: presente, mas esquecida num canto.
Lembro-me do dia do casamento como se fosse ontem. A Inês estava linda, com aquele vestido branco simples que ela própria escolheu. Eu chorava de orgulho e de saudade antecipada. O meu marido, o António, apertou-me a mão durante a cerimónia. — Ela vai ser feliz — sussurrou-me ao ouvido. — E nós também temos de aprender a ser.
Mas o António morreu há três anos. Desde então, a Inês era o meu mundo inteiro. Fomos só nós duas durante muito tempo, cúmplices em tudo. Partilhávamos segredos, receitas, risos e até discussões acesas sobre política ou sobre as novelas da noite. Quando ela conheceu o Miguel, fiquei feliz por vê-la apaixonada. Ele parecia um bom rapaz — educado, trabalhador, sempre com um sorriso pronto. Mas nunca pensei que ele viesse a ocupar tanto espaço na vida dela… e tão depressa.
No início do namoro, a Inês vinha jantar cá a casa todas as semanas. Depois passou a vir de quinze em quinze dias. Agora… já nem me lembro da última vez que esteve aqui sem pressa de ir embora.
— Mãe, tens de perceber que agora tenho uma casa para cuidar — disse-me ela uma vez, quando insisti para que viesse jantar ao domingo. — E o Miguel também gosta de passar tempo com a família dele.
— Mas eu sou tua família! — escapou-me, num tom mais alto do que queria.
Ela suspirou do outro lado da linha.
— Claro que és… Mas agora as coisas mudaram um bocadinho.
Mudaram? Mudaram tanto assim? Sinto-me egoísta por pensar assim, mas não consigo evitar. Passei anos a cuidar dela, a pôr os meus sonhos em pausa para garantir que nada lhe faltava. E agora… parece que fui substituída por outra família.
No Natal passado, ela passou a consoada com os sogros em Braga. Ligou-me à meia-noite para desejar boas festas. Eu estava sozinha na sala, com o bacalhau ainda quente na travessa e uma mesa posta para dois. Chorei baixinho para não me ouvir a mim própria.
Os vizinhos perguntam por ela sempre que me veem no elevador.
— Então, dona Teresa, a menina Inês já lhe deu netos?
Sorrio amarelo e respondo sempre:
— Ainda não… Mas está tudo bem com ela.
Não quero parecer amarga ou ingrata. Sei que é natural os filhos seguirem o seu caminho. Mas ninguém me avisou que ia doer tanto perder aquele lugar especial na vida dela.
Há dias em que tento ocupar o tempo: faço caminhadas pelo bairro, vou ao mercado falar com a dona Lurdes das flores, leio romances antigos na varanda. Mas há sempre um vazio que não consigo preencher.
Outro dia criei coragem e fui até à casa da Inês sem avisar. Levei um bolo de laranja ainda quente.
— Oh mãe… — Ela abriu a porta surpreendida. — Não disseste nada…
— Pensei que podia passar para te ver um bocadinho.
Ela olhou para mim e depois para dentro da casa.
— O Miguel está a trabalhar no escritório… Não queres entrar?
Sentei-me na cozinha enquanto ela arrumava umas chávenas.
— Tens estado tão ocupada… — arrisquei dizer.
Ela parou e olhou-me nos olhos.
— Mãe… eu adoro-te. Mas preciso de espaço para construir a minha vida com o Miguel. Não é por mal…
Senti um nó na garganta. Sorri para não chorar.
— Eu sei, filha… Só tenho saudades tuas.
Ela abraçou-me rapidamente e mudou de assunto.
Na viagem de regresso a casa, pensei em tudo o que tinha feito por ela: noites sem dormir quando estava doente; os trabalhos manuais para as festas da escola; as conversas sobre rapazes e corações partidos; os domingos de chuva em que víamos filmes enroladas numa manta.
Agora tudo isso parece tão distante… Como se tivesse sido outra vida.
Às vezes pergunto-me se fiz algo de errado. Será que fui demasiado presente? Será que devia ter sido mais dura? Ou talvez menos exigente? Ou será simplesmente assim que as coisas são?
No aniversário dela este ano comprei-lhe um livro especial — daqueles que costumávamos ler juntas quando era pequena. Escrevi uma dedicatória longa na primeira página: “Para a minha filha querida, com amor eterno.”
Ela agradeceu com um beijo apressado na testa antes de sair para jantar com amigos.
Naquela noite fiquei sentada à janela a ver as luzes da cidade acenderem-se uma a uma. Senti-me pequena no meio daquele silêncio todo.
No domingo seguinte tentei ligar-lhe outra vez.
— Mãe… estou mesmo cheia de trabalho… depois falo contigo!
Desliguei antes que ela pudesse ouvir o tremor na minha voz.
A vizinha do lado bateu à porta com um prato de arroz doce.
— Está tudo bem consigo? — perguntou com gentileza.
Sorri e agradeci. Não quis falar sobre isso. Não queria parecer uma mãe carente ou possessiva.
Mas será pedir muito querer fazer parte da vida da minha filha? Será egoísmo querer sentir-me necessária?
Às vezes penso em ligar-lhe só para dizer “gosto de ti”. Outras vezes fico à espera que seja ela a lembrar-se de mim sem motivo nenhum.
A vida é feita destas pequenas ausências que se vão acumulando até se tornarem um buraco difícil de tapar.
Sei que um dia talvez venha pedir-me conselhos sobre filhos ou precise do meu colo quando tudo correr mal. Até lá vou tentando aprender a viver com esta saudade nova — uma saudade de alguém que ainda está cá mas já não me pertence da mesma forma.
E vocês? Também sentem este vazio quando os filhos crescem? Como se aprende a deixar ir sem perder quem somos?