Quando a Minha Filha Entrou no Quarto: O Peso do Silêncio e da Solidão
— Não me venhas agora com desculpas, Inês! — a minha voz saiu mais alta do que eu queria, ecoando pelo quarto frio do hospital. Senti o olhar da enfermeira Joana pousar em mim, mas naquele momento pouco me importava. O silêncio entre mim e a minha filha era mais pesado do que qualquer diagnóstico que os médicos me pudessem dar.
Inês ficou parada à porta, o casaco ainda vestido, como se estivesse pronta para fugir a qualquer momento. Os olhos dela, outrora tão doces, estavam agora endurecidos pelo tempo e pelas mágoas. — Mãe, eu trabalho. Tenho a Leonor para cuidar. Não é fácil vir cá todos os dias — disse ela, quase num sussurro, mas com aquela firmeza que sempre teve desde pequena.
Olhei para as minhas mãos enrugadas sobre o lençol branco. Lembrei-me de quando as minhas mãos eram fortes, capazes de pegar nela ao colo, de a proteger do mundo. Agora tremiam, frágeis, dependentes de estranhos para as tarefas mais simples. — Eu sei que tens a tua vida, filha. Só não entendo como é que passaste uma semana sem sequer me ligares — respondi, sentindo um nó apertar-me a garganta.
Ela suspirou e sentou-se na cadeira ao lado da cama. — Não sabes tudo o que se passa na minha vida, mãe. O pai deixou-nos cedo demais e tu… tu nunca foste fácil. Sempre exigiste demais de mim.
As palavras dela caíram como pedras. Senti-me pequena, quase invisível. Tantas vezes tentei ser uma mãe presente, mas talvez tenha sido dura demais. Talvez tenha cobrado demais. — Eu só queria o melhor para ti — murmurei.
O cheiro a desinfetante misturava-se com o perfume suave da Inês. Por um instante, fechei os olhos e voltei atrás no tempo: as manhãs de domingo em que fazíamos bolos juntas, as noites em que lhe contava histórias para adormecer. Onde é que tudo se perdeu?
— O melhor para mim ou para ti? — perguntou ela de repente, interrompendo os meus pensamentos. — Sempre quiseste que eu fosse perfeita. Que tirasse boas notas, que tivesse um bom emprego, que casasse com alguém “de jeito”… Nunca te importaste com o que eu queria realmente.
Senti as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto sem conseguir pará-las. — Eu só queria que tivesses uma vida melhor do que a minha. Não sabes o que foi crescer na pobreza, ver os meus irmãos morrerem de doenças que hoje nem existem…
Ela levantou-se abruptamente. — Pois não sei! Porque tu nunca falaste disso! Sempre guardaste tudo para ti e esperaste que eu adivinhasse!
O quarto ficou em silêncio. A enfermeira Joana entrou para medir a tensão arterial e tentou sorrir-nos, mas sentiu o ambiente pesado e saiu depressa.
— Sabes o que é pior? — disse Inês, já com a voz embargada. — É sentir que agora só me procuras porque precisas de mim. Porque estás sozinha.
As palavras dela doeram mais do que qualquer dor física. Era verdade? Será que só agora me lembrava da filha porque já não tinha forças para ser independente?
— Sempre precisei de ti, Inês. Só não sabia como pedir ajuda — confessei.
Ela olhou para mim durante longos segundos. Vi nos olhos dela um misto de raiva e tristeza. — Eu também precisei de ti tantas vezes… E tu não estavas lá.
O relógio marcava quase seis da tarde. Lá fora começava a escurecer e as luzes da cidade acendiam-se devagarinho. Lembrei-me das noites em que ficava à janela à espera do marido voltar do trabalho — ele também se foi cedo demais, deixando-me sozinha com uma filha pequena e um mundo inteiro por enfrentar.
— Lembras-te quando eu tinha medo do escuro? — perguntei-lhe baixinho.
Ela assentiu com a cabeça.
— E lembras-te do dia em que te perdi no supermercado? Fiquei tão desesperada… Achei que nunca mais te ia ver.
Ela sorriu pela primeira vez desde que entrou no quarto. — Eu só estava escondida atrás das caixas de cereais… Queria ver se davas por mim.
Rimo-nos ambas, mas o riso foi breve e triste.
— Inês… — tentei agarrar-lhe a mão, mas ela hesitou antes de me tocar. — Não quero acabar os meus dias assim contigo. Cheia de mágoas e silêncios.
Ela apertou-me a mão finalmente. — Também não quero isso para nós.
Ficámos ali sentadas em silêncio durante muito tempo. O hospital era um lugar estranho: cheio de vida e morte ao mesmo tempo, de reencontros e despedidas.
— Mãe… Achas que ainda vamos a tempo? — perguntou ela por fim.
Olhei para ela com todo o amor que ainda me restava no peito. — Enquanto houver vida, há tempo, filha.
Quando ela saiu do quarto naquela noite, senti-me mais leve mas também cheia de dúvidas. Será que todas as mães e filhas acabam assim? Presas entre o amor e o ressentimento? Será possível perdoar tudo antes do fim?
E vocês? Já sentiram este peso do silêncio na vossa família? Como se quebra este ciclo?