Quando a Minha Filha Disse Adeus: Entre o Medo e o Orgulho de Deixar Ir
— Mãe, preciso de te contar uma coisa. — A voz da Mariana tremia do outro lado da linha, e eu senti logo um aperto no peito. O António, meu marido, olhou para mim por cima dos óculos, largando o jornal. O silêncio da nossa casa em Vila Nova de Poiares tornou-se ainda mais pesado.
— O que foi, filha? — perguntei, tentando soar calma, mas já com as mãos frias.
— Não te preocupes, nada de mal aconteceu… Só… só decidi que vou viver sozinha. — Ela fez uma pausa. — Já falei com o Rui. Ele sabe. Vou sair de casa.
O mundo parou. O António levantou-se devagar, como se pressentisse a gravidade da conversa. Senti-me a afundar na cadeira da cozinha, rodeada pelo cheiro do pão acabado de cozer e pelo tique-taque do relógio antigo.
— Mas… Mariana… estás bem? O que aconteceu? — A minha voz saiu mais aguda do que queria.
— Estou bem, mãe. Só preciso disto para mim. Preciso de me encontrar. — A voz dela era uma mistura de medo e determinação.
O António tirou-me o telefone das mãos.
— Mariana, olha lá, não vais fazer nenhuma asneira, pois não? — perguntou ele, sempre mais direto do que eu.
— Não, pai. Só preciso de espaço. Por favor, não fiquem zangados comigo.
Quando desligámos, fiquei ali sentada, a olhar para o vazio. O António resmungou qualquer coisa sobre modernices e foi para o quintal fumar um cigarro. Eu fiquei sozinha com os meus pensamentos e as memórias da Mariana em pequena: os joelhos esfolados das correrias no campo, as birras por causa dos legumes ao jantar, os abraços apertados nas noites de trovoada.
Naquela noite não dormi. O António roncava ao meu lado, indiferente à tempestade dentro de mim. Levantei-me e fui até à sala. Sentei-me no sofá e chorei baixinho, para ninguém ouvir. Senti-me culpada: teria falhado como mãe? Teria sido demasiado exigente? Ou demasiado permissiva?
No dia seguinte, liguei à minha irmã Lurdes.
— Ela está a seguir o coração dela — disse-me Lurdes, sempre prática. — Tu também foste assim quando eras nova. Lembras-te quando quiseste ir estudar para Coimbra e o pai quase teve um ataque?
Sorri entre lágrimas. Era verdade. Mas os tempos eram outros. Agora tudo parecia mais difícil, mais perigoso.
Durante dias tentei falar com a Mariana, mas ela respondia pouco. Dizia que estava ocupada a procurar casa, que precisava de tempo para pensar. O Rui ligou-me uma vez:
— Dona Teresa, não sei o que lhe diga… Eu amo a Mariana, mas ela está diferente. Não sei se é culpa minha…
Tentei confortá-lo, mas sentia-me tão perdida quanto ele.
As vizinhas começaram a comentar. Na mercearia, ouvi a Dona Emília sussurrar:
— Aquela menina da Teresa… deixou o marido! Que vergonha…
Senti raiva e vergonha ao mesmo tempo. Queria gritar que a Mariana era livre de escolher o seu caminho, mas também queria protegê-la do mundo inteiro.
O António fechou-se ainda mais. Passava os dias no campo ou na taberna com os amigos. À noite discutíamos:
— Isto é culpa tua! Sempre lhe deste demasiada liberdade! — gritava ele.
— E tu? Sempre tão rígido! Achas que ela ia querer ficar presa numa vida igual à nossa?
As discussões tornaram-se rotina. O silêncio entre nós era mais pesado do que qualquer palavra dita.
Uma tarde, recebi uma mensagem da Mariana: “Mãe, já tenho casa. Preciso de ti.”
Fui ter com ela a Lisboa no sábado seguinte. O comboio parecia arrastar-se eternamente pelos campos verdes e pelas aldeias adormecidas. Quando cheguei ao prédio antigo onde ela ia morar, vi-a à porta com duas malas e um sorriso nervoso.
— Olá mãe… — disse ela, abraçando-me com força.
Subimos juntas as escadas estreitas até ao terceiro andar. O apartamento era pequeno: uma sala com kitchenette, um quarto minúsculo e uma janela com vista para os telhados da cidade.
— É pouco, mas é meu — disse ela com orgulho.
Ajudámo-la a arrumar as coisas: livros, roupas, fotografias antigas. Vi uma moldura com uma foto nossa na praia da Figueira da Foz e senti um nó na garganta.
— Tens a certeza disto tudo? — perguntei baixinho.
Ela olhou-me nos olhos:
— Tenho, mãe. Preciso de aprender quem sou sem ser só mulher do Rui ou filha vossa. Preciso de ser só eu.
Chorámos as duas nesse instante. Abracei-a como se fosse ainda aquela menina pequena que tinha medo do escuro.
Nos dias seguintes voltei para casa com o coração apertado. O António não quis saber dos detalhes:
— Se ela quer ser independente, que seja! — disse ele amargurado.
Mas eu sabia que ele sofria em silêncio. Uma noite encontrei-o no alpendre a olhar para as estrelas.
— Achas que ela vai voltar? — perguntou-me baixinho.
— Não sei… Mas acho que vai ser feliz assim.
Os meses passaram devagar. A Mariana ligava-me de vez em quando: falava das dificuldades de pagar a renda sozinha, das saudades do campo e dos cozinhados da mãe, das noites em que se sentia perdida na cidade grande.
Um dia veio visitar-nos ao fim-de-semana. Trouxe um ar cansado mas feliz.
— Estou a aprender tanto sobre mim… — disse ela à mesa do almoço.
O António tentou esconder um sorriso orgulhoso por trás do guardanapo.
Aos poucos fui percebendo que amar um filho é deixá-lo partir quando precisa voar sozinho. Que ser mãe é aceitar que não podemos proteger sempre quem mais amamos.
Hoje olho para trás e vejo quanto cresci também nesta viagem dolorosa. Aprendi a respeitar as escolhas da Mariana e a confiar na sua força.
Às vezes pergunto-me: será que algum dia estamos realmente preparados para deixar ir quem amamos? Ou será esse o maior ato de amor?